Por Fredda Amorim
26/11/2024
Esse texto é travessia e encontro, afet(A)ção e escrita que sai da pele; faz parte da cobertura crítica do Festival Recife do Teatro Nacional (PE), realizado entre os dias 21 de novembro e 01 de dezembro de 2024, que está sendo acompanhado criticamente pelo projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado. Fazem parte dessa cobertura es profissionais da crítica Heloísa Sousa (RN), Fredda Amorim (MG), Kil Abreu (SP) e Ivana Moura (PE). Outras críticas sobre esse mesmo festival podem ser acessadas nos sites do Cena Aberta e Satisfeita, Yolanda?.
Para começar, acho importante nos situarmos nesse território que, por mais despretensioso que pareça, é carregado de reflexão. Meu objetivo aqui não é apenas analisar a cena em si, mas compreender a feitura, os movimentos e os atravessamentos que esse acontecimento teatral possibilita. Fazer teatro sempre foi, e hoje é mais do que nunca, um trabalho de extrema importância, quase operário, que demanda atenção e dedicação.
Colocar-me na posição de um olhar crítico me transforma e me permite um processo de transmutação. E fazer isso dentro do contexto de um festival, então, ganha outra dimensão. Encaro o festival como uma tecelagem complexa, uma grande rede em que cada elemento e função tem sua relevância, dando o tom necessário para que a costura final aconteça de forma coesa. Os espetáculos se tornam linhas que, alinhavadas por um desejo curatorial, constroem um todo que precisa levar em consideração questões essenciais. Estas questões vão garantir a tonalidade que se busca transmitir, tanto no plano individual de cada obra quanto na entrega global do festival como um todo.
Nos últimos tempos, temos refletido muito sobre a importância de um processo curatorial bem estruturado – e ao mesmo tempo livre – para que esse trabalho tenha sentido e relevância. Esse é um tema que, como comentei, trago para refletirmos ao longo deste e dos próximos textos que me proponho a escrever para o festival. Agradeço a todos que leem estas palavras, que abrem caminhos para esse processo coletivo de construção.
Foto de Annelize Tozetto
Logo na chegada, fui recebida em Tebas – ou, melhor dizendo, na reinterpretação de Tebas proposta pelo grupo de teatro recifense Magiluth. Para comemorar seus vinte anos de pesquisa, o grupo apresenta Édipo REC, um espetáculo que provoca uma reflexão sobre o mundo contemporâneo, a partir de uma releitura ousada de um clássico da literatura. A obra de Sófocles é aqui adaptada de maneira que, ao mesmo tempo, dialoga com o presente e ressignifica as camadas da tradicional tragédia grega.
O espetáculo não se limita a reproduzir a fábula de Édipo, mas a transporta para o contexto atual, criando um espaço em que os dilemas antigos se encontram com as questões do nosso tempo. Ao fazer isso, Édipo REC não apenas revisita a mitologia, mas também a reinventa, trazendo novas dimensões para um clássico que permanece atual em sua abordagem das grandes questões humanas: destino, poder, identidade e o conflito entre o indivíduo e a sociedade.
O "REC" no título faz referência tanto à cidade de Recife quanto ao termo utilizado no audiovisual, que significa "gravando". A peça mistura a visão de um Recife futurista, em 2024, com a ideia de registro, um conceito presente desde a época áurea do cinema. Como observa o diretor Luiz Fernando Marques, uma das marcas de sua pesquisa é justamente a conexão com o cinema e a maneira como ele permeia a narrativa teatral.
Em Édipo REC, o coro, que nas tragédias gregas representava a voz da sociedade, ganha uma nova dimensão. Ao invés de apenas observar e julgar, como na obra original, o coro se torna uma presença ativa, quase como uma câmera, que não apenas registra, mas também interage com o público. Essa participação direta provoca risos, reflexões e estabelece uma relação mais próxima entre a cena e a plateia, transformando a tragédia em algo acessível e ao mesmo tempo desafiador. A peça não se limita à mera reprodução de uma história antiga, mas a reinventa, com uma visão contemporânea e visceral.
Um dos elementos mais impactantes dessa transformação é o uso do leque, um objeto carregado de simbolismo. Tradicionalmente associado às cenas CUIR no Brasil e à cena ballroom, o leque em Édipo REC adquire o status de "palavra de ordem", especialmente no grito "VRAAAAAAAA - QUE TEBAS É ESSA?", que não só provoca a plateia, mas também reafirma a identidade do coro e seu papel como mediador entre o drama e o público. Esse objeto não apenas chama atenção, mas reforça o caráter de resistência e reflexão que permeia toda a obra. VAMOS DANÇAR ATÉ OS PÉS FICAREM INCHADOS!!!!
Foto de Camila Macedo
O espetáculo não se limita a questionar a duração de uma tragédia, mas provoca uma reflexão mais profunda sobre as tragédias de nossas próprias vidas. Quanto tempo dura uma tragédia? Vinte anos? Uma vida inteira? Ou será algo eterno? Essas perguntas, que ecoam ao longo da montagem, buscam mostrar que a tragédia não é algo distante, mas algo muito próximo, que reverbera em nosso cotidiano. O riso e a reflexão se entrelaçam, criando uma experiência multifacetada e cheia de camadas.
Em sua releitura de Sófocles, o Magiluth traz à tona uma discussão sobre o impacto das imagens e dos registros audiovisuais em nossas vidas, ao mesmo tempo em que conecta a tragédia ao contexto atual. A obra inspira-se no trabalho do cineasta Pier Paolo Pasolini, que em sua adaptação de Oedipus Rex (1967) utilizou o mito de Édipo para questionar as estruturas de poder e o autoritarismo, trazendo o povo para o centro da cena. Em Édipo REC, essa relação com o "povo" também é central, com a utilização de corpos dissidentes e a ênfase em uma diversidade de perspectivas que, ao mesmo tempo que questionam, celebram a resistência e a multiplicidade de vozes.
A comparação com Pasolini se estende também à ruptura da linearidade do tempo e à fragmentação da narrativa. Assim como o cineasta utilizou o mito de Édipo para criticar a arrogância da aristocracia e o controle autoritário, Édipo REC também provoca uma reflexão sobre os sistemas de dominação e sobre as lutas sociais. Embora se distancie da crítica política explícita de Pasolini, o espetáculo ainda dialoga com as questões de poder, opressão e a manipulação das massas, com uma abordagem mais focada nas dinâmicas sociais contemporâneas.
Esse movimento de transmutação da tragédia também se desvela na interação com a cidade. Ao quebrar a quarta parede, o espetáculo transforma o palco em um espaço onde o público não é mais mero espectador, mas se vê imerso em um ambiente em que o teatro se entrelaça com o mundo real. A abertura do fundo do palco, que revela a cidade de Recife, amplia o horizonte da tragédia, trazendo à tona uma reflexão sobre as tensões e as contradições sociais que existem nas ruas e nos corpos que habitam essa cidade. A tragédia, portanto, deixa de ser um evento isolado e se torna uma vivência coletiva, que se reflete nas questões urgentes do presente.
Ao colocar a cidade como pano de fundo, Édipo REC propõe uma catarse que ultrapassa o sofrimento individual das personagens. A cidade, com suas complexidades e disputas, torna-se um protagonista ativo na trama, e seu papel na formação do destino das pessoas é central para a compreensão da tragédia. O espetáculo questiona não só os destinos pessoais, mas também as estruturas sociais e políticas que ainda nos condicionam e que moldam as escolhas e os destinos dos indivíduos.
Assistir e participar de Édipo REC é um convite para refletir sobre o que configura uma tragédia nos tempos atuais. A peça, ao fundir a tradição com a cena contemporânea, propõe uma metáfora potente para diferentes formas de violência, opressão e transformação. Em um constante confronto de ideias, o espetáculo desafia o público a refletir sobre o que é aceitável e o que é intolerável, as fronteiras entre o amor e o horror, e as dinâmicas de poder que atravessam nossas vidas.
Essa experiência não se limita a uma abstração intelectual, mas se torna uma vivência concreta e visceral. Ao envolver o público de maneira direta, Édipo REC amplia as fronteiras da tragédia, tornando-a uma experiência coletiva, imersiva e reflexiva, onde o teatro se torna um espelho das questões sociais, políticas e pessoais que definem e limitam o destino das pessoas. O espetáculo convida, assim, a uma reflexão contínua sobre a natureza das tragédias cotidianas, sobre o papel de cada um dentro da sociedade e sobre as transformações possíveis a partir dessa conscientização coletiva.
Não poderia deixar de dizer que, desde o primeiro momento em que cheguei à porta do teatro, fui recebida de maneira marcante, quase ritualística, pelo corifeu (Erivaldo Oliveira - SHOWMEEEEE), uma presença que já indicava o tom do espetáculo. A entrada é marcada pela discotecagem de Édipo (Giordano Castro), que assume o papel de DJ e, com seu controle sobre o som, dá o ritmo e o tom da narrativa. Esse elemento de festa se estabelece logo de cara, e é impossível não sentir que a celebração é imensurável, talvez até infinita, estendendo-se, como uma onda, até o amanhecer da festa de comemoração no final.
Digo isso para destacar como o sentimento de festival permeia toda a experiência. Não se trata apenas de uma estrutura de espetáculo, mas de uma atmosfera de celebração contínua, que transcende as fronteiras entre o palco e o público. A sensação de que estamos todos imersos em algo maior, em um acontecimento coletivo e em constante movimento, está no ar o tempo todo. É como se a própria estrutura do festival fosse uma extensão da proposta do espetáculo: uma experiência que, assim como a tragédia, não tem fim, mas se renova e se reinventa o TEMPO todo.
VIDA LONGA AO GRUPO MAGILUTH!
Foto de Annelize Tozzeto
FICHA TÉCNICA
Criação: Grupo Magiluth, Nash Laila e Luiz Fernando Marques
Direção: Luiz Fernando Marques
Dramaturgia: Giordano Castro
Elenco: Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres, Mário Sergio Cabral, Nash Laila e Pedro Wagner
Design de Luz: Jathyles Miranda
Design Gráfico: Mochila Produções
Figurino: Chris Garrido
Trilha sonora: Grupo Magiluth, Nash Laila e Luiz Fernando Marques
Cenografia e montagem de vídeo: Luiz Fernando Marques
Cenotécnico: Renato Simões
Vídeo Mapping e Operação: Clara Caramez
Captação de imagens: Bruno Parmera, Pedro Escobar e Vitor Pessoa
Equipe de Produção de vídeos: Diana Cardona Guillén, Leonardo Lopes, Maria Pepe e Vitor Pessoa
Produção: Grupo Magiluth e Corpo Rastreado