Imaginários do Sertão

Por Heloísa Sousa
29/11/2024

Esse texto faz parte da cobertura crítica do Festival Recife do Teatro Nacional (PE), realizado entre os dias 21 de novembro e 01 de dezembro de 2024, que está sendo acompanhado criticamente pelo projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado. Fazem parte dessa cobertura es profissionais da crítica Heloísa Sousa (RN), Fredda Amorim (MG), Kil Abreu (SP) e Ivana Moura (PE). Outras críticas sobre esse mesmo festival podem ser acessadas nos sites do Cena Aberta e Satisfeita, Yolanda?.


 

As imagens e narrativas produzidas pelas artes da cena na Região Nordeste são sempre composições e disputas delicadas. Entre um imaginário construído sobre nós de maneira forçosa, os estereótipos disseminados em veículos midiáticos, uma realidade derivada de processos coloniais e uma paisagem política e geográfica própria da região que suscita invenções e hábitos culturais resistentes, também se alinham os desejos de reconhecimento de si e a preservação da nossa própria memória. Não à toa, o espetáculo “Malassombros: Contos do Além Sertão” do Teatro de Retalhos, coletivo teatral de Arcoverde, cidade do interior de Pernambuco, ganhou o Prêmio Ayrton de Almeida Carvalho de Preservação do Patrimônio Cultural de Pernambuco em 2023.

A partir do desejo de contar, no teatro, histórias assustadoras; o coletivo reúne em cena figuras, narrações e sonoridades próprias da cultura do sertão nordestino. A dramaturgia escrita por Caroline Arcoverde e Djaelton Quirino apresenta, em cena, dois narradores e uma narradora - Dona Nina, Seu Biu e Zé das Cangas - que se encontram para contar algumas histórias em um tom que busca transitar entre a ludicidade, a comicidade e o medo. A narração é intercalada pela trilha sonora tocada ao vivo por um trio de forró e pela aparição de bonecos manipulados pelo elenco que presentificam as figuras assombrosas citadas nas histórias. 

A visualidade da peça é, notavelmente, o ponto de maior destaque, tanto pela coesão na elaboração cenográfica quanto na confecção meticulosa dos grandes bonecos manipulados de modos diversos em cena. A composição visual da peça finda por se apoiar tanto nas tonalidades e materialidades que caracterizam a geografia e o imaginário estético-cultural do sertão nordestino, quanto na subversão de utensílios comuns que são usados para compor as figuras manipuláveis. Se por um lado, os discursos de resistência a qualquer tipo de estigmatização estética da produção cênica do Nordeste questiona esses parâmetros visuais, por outro, também não é possível seguir com esse debate de modo honesto sem considerar a concretude dessas materialidades na paisagem que cobram um pensamento dialético na observação crítica dessas composições cênicas. A partir dessa obra, começo a pensar - para além dela - que talvez o ponto crucial não seja a recusa dessas materialidades, mas o desvio de qualquer possibilidade de “composição pura” que nega a promiscuidade e instabilidade própria de toda identidade cultural e o cosmopolitismo possível do Nordeste. Nesse sentido, o espetáculo “Malassombros” se alinha a esse purismo imaginário, ao mesmo tempo em que o reafirma como imaginação ao lidar com as narrativas folclóricas e suas funcionalidades moralistas. Afirmo aqui esse “moralismo” sem me ater a camada pejorativa dessa palavra, mas sim a uma intenção objetiva das lendas em solucionar algum enigma da realidade comum ou inventar formas de educar os mais jovens a determinados comportamentos a partir do medo. Parece haver muito paralelo entre esse folclore do Nordeste e os contos de fadas europeus, por exemplo… o que me levar a pensar que, se dramaturgos como o francês Jôel Pommerat vem atualizando contos infantis europeus e observando as camadas políticas em torno da aparente inocência desses fábulas, o que ocorreria se algum dramaturgo nordestino fizesse o mesmo movimento a partir dos contos folclóricos da nossa região? Ou seja, ao invés de apenas repeti-las, permitir que a arte da cena as assuma como um problema artístico a ser investigado e experimentado. Com isso, quero dizer que, o Teatro de Retalhos nos traz uma proposição artística que pode parecer reincidente e estereotipada, mas que, pela sua concretude cultural, deveria ser observada por nós, críticos das artes da cena no Nordeste, com outra atenção que possa preceder qualquer descarte automatizado dessas ideias.

Foto de Rayra Martins

É neste ponto que então reside a maior fragilidade da encenação, ao tentar equilibrar linhas opostas como o terror e a comicidade, recorrendo a diálogos fáceis ou aparições simples que podem sugerir algum impacto da recepção (em especial nas crianças), mas que não oferece nenhuma outra visão sobre essas mesmas histórias. Na ocasião da apresentação do espetáculo durante a programação do Festival Recife do Teatro Nacional, questões técnicas com o som impediram uma fruição completa das histórias narradas, embora fosse visível uma teatralidade muito mais apoiada na materialização dos objetos cenográficos do que na elaboração das movimentações em cena e da dramaturgia. As histórias pareciam ser contadas de modo acumulativo, centralizando a narração como um “simples contar” para entreter o público e tornar reconhecível histórias antigas. Ainda insisto na ideia de que há, nessa escolha, algo de muito coerente em termos estéticos e políticos, mas que precisam ser tomados de forma dialética no olhar sobre a tradição. Considerando a trajetória notável do teatro de Retalhos na lida com elementos circenses e também da cultura popular, passos adiante podem ser tomados para observar as nossas tradições como terrenos instáveis, reiterando sua força justamente em seus modos de compor relações e sujeitos complexos e uma tensão histórica entre o apagamento e a preservação. 

 

FICHA TÉCNICA

Elenco: Caroline Arcoverde, Djaelton Quirino, Éder Lopes 

Músicos: Felipe Anderson, Ju Vieira e Jadson André

Direção: Djaelton Quirino

Texto e Músicas: Caroline Arcoverde e Djaelton Quirino

Figurino: Caroline Arcoverde e Auricélia Siqueira

Cenografia: Djaelton Quirino

Trilha Sonora: Tocha Ribeiro e Ju Vieira

Contrarregragem: Alex Pessoa 

IIuminação: Tocha Ribeiro

Sonorização: Adriano Galvão

Foto do Banner de Anderson Lima.

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