Por Fredda Amorim
29/11/2024
Esse texto é travessia e encontro, afet(A)ção e escrita que sai da pele; faz parte da cobertura crítica do Festival Recife do Teatro Nacional (PE), realizado entre os dias 21 de novembro e 01 de dezembro de 2024, que está sendo acompanhado criticamente pelo projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado. Fazem parte dessa cobertura es profissionais da crítica Heloísa Sousa (RN), Fredda Amorim (MG), Kil Abreu (SP) e Ivana Moura (PE). Outras críticas sobre esse mesmo festival podem ser acessadas nos sites do Cena Aberta e Satisfeita, Yolanda?.
A peça "As Charlatonas", da Trupe-AÇÚ Cia. de Circo (TO), apresentada no Festival Recife do Teatro Nacional no Parque da Macaxeira, é uma comédia criativa e provocadora que mistura as linguagens do circo e do teatro para discutir o papel das mulheres na sociedade e no desenvolvimento da humanidade. A trama, protagonizada por duas palhaças sócias de um comércio ambulante, nos leva a uma viagem de risos e reflexões sobre as complexas relações entre ciência, empreendedorismo e feminismo, tudo isso em um cenário que celebra a leveza do circo, mas também faz críticas pontuais às estruturas que moldam o mundo contemporâneo. O enredo gira em torno de duas personagens com visões de mundo conflitantes: uma é a cientista, que busca respostas no rigor da razão e da pesquisa, enquanto a outra é a vendedora, que vê no comércio e na persuasão a chave para o sucesso. Elas são sócias em um negócio que oferece soluções milagrosas para qualquer tipo de problema, uma espécie de "panaceia" ambulante. Mas, à medida que a história se desenrola, as duas se deparam com um desafio maior: a criação de um elixir que promete curar todos os males do mundo, um "produto perfeito" que, ironicamente, traz à tona suas divergências de ideais e de abordagem diante da vida.
Neste momento icônico da peça, acontece a participação do público através da convocação de alguém para ser a "cobaia" – ou melhor, "voluntário", como elas mesmas corrigem em cena – para provar o elixir que fatalmente não funciona. Nesse dia e ato específico da apresentação, fiquei encantada com a forma como a criança comprou o jogo teatral e entrou profundamente na cena, chegando a desmaiar (de mentirinha), inclusive, depois que é revelado que, na verdade, o que continha no tubo de ensaio era um veneno.
A grande força de "As Charlatonas" está na forma como ela explora a dinâmica entre essas duas personagens femininas. As duas palhaças, com suas falhas e virtudes, encarnam arquétipos de mulheres que, ao longo da história, foram protagonistas em diferentes áreas, muitas vezes ofuscadas ou invisibilizadas pelos padrões patriarcais. A peça se propõe a relembrar e revalorar essas mulheres, recuperando figuras históricas esquecidas, mas sem jamais cair no didatismo ou na solenidade. O tom cômico e leve, característico do circo, ajuda a tornar a reflexão acessível sem perder a profundidade da mensagem. Trazer a trajetória de mulheres de grande importância e relevância para o mundo numa peça infantil e de forma tão descontraída transforma este acontecimento numa grande aula, onde as crianças são confrontadas a entender que objetos, por vezes tão cotidianos e até domésticos, foram criações de grandes mulheres que se tornaram populares.
Em sua interação, as personagens representam diferentes formas de resistência e inovação femininas: a cientista, que investiga e cria soluções a partir da lógica e da razão; e a vendedora, que entende a importância de comunicar e negociar, mobilizando a inteligência emocional e a capacidade de adaptação ao contexto. A peça coloca essas duas dimensões em confronto, mas ao mesmo tempo as faz perceber que o verdadeiro avanço só acontece quando as diferenças são respeitadas e integradas.
A direção e a performance das atrizes são elementos-chave para a construção dessa obra híbrida, que une o vigor do circo à profundidade do teatro. O uso de elementos clássicos da comédia, como o "número de mágica" e as trapalhadas das personagens, é entremeado por momentos de crítica social e política, dando à peça uma estrutura dinâmica que prende a atenção do público. O Festival Recife do Teatro Nacional, ao escolher a obra para este espaço, soube potencializar a força do espetáculo. O Parque da Macaxeira, com sua atmosfera de convivência popular, se tornou um cenário ideal para acolher o trabalho, que propõe uma reflexão não apenas sobre o papel das mulheres, mas sobre como essas questões podem ser abordadas de forma lúdica e acessível, sem perder a crítica social. O público foi chegando aos poucos, atraído pela música e pela convocação de Girassol (Giovana Kurovski) e Tapioca (Ester Monteiro).
O uso do humor, da ironia e do exagero circense é, de fato, uma das maiores virtudes da peça. O público ri das situações absurdas e do improviso das palhaças, mas também se vê diante de um espelho, refletindo sobre as complexas questões sociais e históricas levantadas pela trama. As palhaças não apenas fazem rir; elas questionam o lugar da mulher na sociedade, seu papel nas ciências, na arte e na economia. A descoberta do "elixir milagroso" se torna um símbolo da busca incessante da mulher pela afirmação de seu espaço e seu protagonismo, mas também do perigo da mercantilização de suas ideias e habilidades.
A peça não apenas faz alusão àquelas mulheres que mudaram o mundo, mas também resgata figuras muitas vezes esquecidas pela história oficial, destacando o valor de suas contribuições para o progresso da sociedade. Esse aspecto da peça, que reflete a importância da memória e da valorização do trabalho feminino, é especialmente tocante, pois nos faz perceber como as narrativas históricas podem ser distorcidas ou omitidas, e como é essencial resgatar essas histórias.
"As Charlatonas" é uma peça que, com leveza e profundidade, provoca o público a repensar o papel da mulher nas esferas da ciência, do comércio e da cultura. Com uma direção de Karla Conká que sabe equilibrar a comicidade do circo com a densidade de um discurso feminista, o espetáculo se apresenta como uma homenagem às mulheres, suas conquistas e desafios, e como um convite à reflexão sobre o que é realmente necessário para transformar o mundo.
A montagem se destaca também pelo seu engajamento com o público local, ao ser apresentada em um espaço como o Parque da Macaxeira, onde a convivência e o encontro de diferentes realidades se tornam um espaço de troca e de reflexão coletiva. O festival, ao promover este tipo de espetáculo, reforça seu papel não apenas como um evento de arte, mas como uma plataforma de conscientização social e cultural.
Não poderia deixar de dizer que "As Charlatonas" é uma celebração do feminino, da ciência e do poder transformador da união, e merece ser vista por aqueles que buscam uma reflexão cômica, mas profunda, sobre a construção da história e da sociedade.
Que mulher genial, que mulher empreendedora! Que mulheres incríveis!
Valha-me minha nossa senhora, mãe das palhaças de cabaré!
FICHA TECNICA:
Palhaça Tapioca: Ester Monteiro
Palhaça Girassol: Giovana Kurovski
Criação e Dramaturgia: Trupe-AÇÚ
Direção: Karla Conká
Preparação de Elenco: Painé Santamaria
Trilha Sonora Original: Tetê Purezempla
Produção: Trupe-AÇÚ
Cenografia e Figurino: Vivian Oliveira e Gedeane Sousa
Design: Lucas Fontana
Operador de Som e Assistente: Ithalo Kodó .
Fotos: Lizi Cruz (@terraquealizi) e Andrey Rodrigues