Por Heloísa Sousa
29/11/2024
Esse texto faz parte da cobertura crítica do Festival Recife do Teatro Nacional (PE), realizado entre os dias 21 de novembro e 01 de dezembro de 2024, que está sendo acompanhado criticamente pelo projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado. Fazem parte dessa cobertura es profissionais da crítica Heloísa Sousa (RN), Fredda Amorim (MG), Kil Abreu (SP) e Ivana Moura (PE). Outras críticas sobre esse mesmo festival podem ser acessadas nos sites do Cena Aberta e Satisfeita, Yolanda?.
Quando a obra permite, a crítica pode ecoar na forma que ela propõe e estender sua composição.
Se eu fosse concluir uma crítica sobre essa obra, eu abordaria os seguintes pontos:
1
“Grupo não tem síntese”. Trecho da dramaturgia de Rafael Martins.
Síntese (subst. fem.): Método, processo ou operação que consiste em reunir elementos diferentes, concretos ou abstratos, e fundi-los num todo coerente.
Realmente, grupo não tem síntese.
Um grupo de teatro é uma célula social utópica e concreta, simultaneamente e paradoxalmente. Uma grupalidade que se aproxima por livre e espontâneo desejo, e que apesar de estar com os pés fincados em um sistema econômico capitalista e com as mãos entrelaçadas em negociações agressivas com o circuito mercadológico das artes cênicas, é também um pequeno modelo anarquista de engajamento e convivência onde a vontade de permanecer em criação é superior [embora não absolutamente autônoma] à vontade de lucrar. É uma comunhão não-harmônica de diferentes elementos que permanecem distintos em si e em mutação, não possui coerência nem coesão, mas sim acordos frágeis e instáveis que se sustentam pelos minutos que duram uma experiência de apresentação cênica para que, naquele instante, a partilha com o público seja possível e esteja acima de todas as idiossincrasias das partes que compõem o grupo.
Um grupo de teatro é o impossível. O que atesta que somos seres capazes do impossível.
Um processo criativo é, então, um percurso no tempo de convivência impossível entre uma grupalidade que busca criar alguma coisa pela absurda necessidade de criação - acreditando ainda que essa necessidade é política e social. É um percurso no tempo que se apoia em metodologias inventadas no próprio percurso para dar conta de alcançar alguma hipótese cênica que trará ao mundo uma experiência que irá se converter em memória e de onde ninguém sairá ileso.
Alguém começa a imaginar um grupo. Alguém faz um acordo com alguma outra pessoa para começar um grupo. Alguém começa a imaginar uma peça. Alguém compartilha uma ideia com outra pessoa que vai confiar nisso e se empenhar para tornar real uma imaginação. E como acaba? A última cena de uma peça de teatro está mais próxima do início da sua estreia e do nascimento efetivo de sua existência no mundo do que a cena inicial. A não ser que se comece a criar pelo fim. E uma peça, vejam só, é uma peça - uma pedaço de alguma coisa, uma parte. Aquilo que a gente pensa ou determina que se conclui e oferece com um todo, um acontecimento, um objeto imaterial, é, na verdade, um pedaço de alguma coisa.
Logo, toda peça teatral é, ontologicamente, inacabada?
2
O pessoal do teatro adora falar sobre teatro no próprio teatro. Só que raramente eles realmente falam sobre teatro, ao invés disso, falam sobre os desafios pessoais de fazer teatro. A quem isso interessa? Ao pessoal do próprio teatro? Seria então mais um sintoma das egotrips comuns aos artistas que usam da experiência teatral para projetar suas necessidades não atendida$ por um divã?
Acho que o pessoal do Bagaceira acessa uma outra coisa. Porque acho que eles estão realmente tentando falar sobre teatro. Ao falar sobre o inacabado no teatro, eles tentam acessar materialmente o limite que tornará algo teatral. O desenho usado no material gráfico de divulgação da apresentação dessa obra na programação do Festival Recife do Teatro Nacional é uma imagem que expõe muito bem esse limiar, essa transição convencional que teatraliza um movimento, uma imagem, uma sonorização e que transforma algo em cena.
Vejamos:
Print de postagem no perfil @grupobagaceira
Só que para isso, eles buscam manter a cena na zona do rabisco. A imobilidade do desenho não nos permite afirmar se os pés estão indo ou retrocedendo. Na obra “Inacabado”, os atores e atrizes parecem querer mostrar como seria a obra ou a cena, mas buscando escapar de mimetizar a imaginação. E aí está a inteligência desse procedimento - que embora se mostre eficiente e possível a partir da própria peça, ainda parece ser encenado com algum receio.
Essa peça é uma quase-peça. E precisaria radicalmente manter-se assim, um pedaço do pedaço, para poder fazer jus a esse desejo concreto e pertinente do grupo.
3
Em “Inacabado” é a teatralidade em si - e não a espetacularização - que fica evidente. Isso me fez pensar: uma pintura “boa” e uma pintura “ruim” podem se utilizar dos mesmos pinceis, das mesmas tintas, do mesmo quadro e do mesmo membro motor. Se a matéria é a mesma, o que as distingue em sua “qualidade”? Podemos concluir que a diferença está no gesto que move as materialidades. Logo, visualmente, uma peça muito boa é muito parecida com uma peça muito ruim; embora, elas sejam sensorialmente muito distintas.
Talvez seja isso que nos faça viver uma experiência estética interessante com a obra do Bagaceira, mesmo que pareça “não ter nada” em cena. Porque há a intenção de lidar com o “inacabamento” - têm-se o início, mas não se apresenta o fim ou uma lapidação em torno da matéria teatral levantada. E esse início é da ordem do desejo, do “querer” ou “imaginar” tal coisa. É como o gesto de entrar em cena, posicionar-se diante do público e parar… suspender… algo está por vir… que nunca vêm. Essa cena aparece logo no início da obra e ao evocar o “estar em cena” do modo mais literal possível, o grupo alcança uma tautologia muito interessante para a cena, que faz aquele procedimento ser radicalmente concreto por alguns minutos, mas que finda por perder-se na tentativa de posteriormente “mostrar” alguma coisa. Criar um rabisco de cena e mantê-lo enquanto tal durante a apresentação é um imenso e atraente desafio que, se alcançado, poderia fazer o próprio teatro mostrar onde reside espacialmente e convivialmente a sua própria teatralidade.
4
O autor Ricardo Basbaum escreveu sobre o artista-etc, figura que surge na modernidade e que acumula em si mesma diversas funções culturais e artísticas na tentativa de sobrevivência, é um sintoma da relação da arte com o mercado capitalista. Em “Inacabado” entra em cena o dramaturgo, a produtora, a iluminadora, a filha da produtora, e todes também atuam - ou partiram das funções de atores e atrizes. Na lógica de grupalidade no teatro, o aprender novas funções torna-se inevitável para a sustentação do próprio grupo, o que se sobrepõe aos desejos de algum modo.
“Esse ‘artista-etc’ vem querer reforçar o artista enquanto produtor, no sentido de reconhecer esse artista com ferramentas conceituais, capaz de sentar em uma mesa de negociação com todos os outros interlocutores, capaz de intervir em cada um desses campos e também de exercer papeis em todos esses campos, pensando que a obra de arte é sim algo de produção material, mas também de produção crítica, histórica e teórica”. (Basbaum).
A questão é que assumir-se em diferentes posições não pode dizer somente sobre pisar nos distintos territórios de articulação artística, mas de compreender modos de se posicionar e interagir a partir desses pontos.
A figura do ator e da atriz são figuras complicadas, não é? Para ser ator ou atriz basta pisar no palco? Para ser dramaturge basta escrever palavras a serem enunciadas no palco? Para ser iluminadore basta definir qual refletor será aceso em direção ao palco? É a delimitação do espaço cênico, então, que possui a autoridade da determinação teatral?
“Inacabado” parece expor uma quase-peça criada por um grupo de artistas-etc.
5
O grupo de teatro como célula social utópica e concreta vivencia de modo coletivo todas as experiências individualizadas pelo mundo moderno: o grupo envelhece junto, o grupo enterra seus mortos, o grupo pari suas crianças, o grupo casa seus parceiros, o grupo divorcia seus parceiros, o grupo nasce, o grupo amadurece, o grupo trai, o grupo erra, o grupo acerta, o grupo trai de novo, o grupo morre, o grupo se desmancha no ar, o grupo se eterniza.
“Inacabado” é também um ritual de passagem, como disse a crítica e pesquisadora Fredda Amorim em uma conversa informal pós-espetáculo; é um modo de velar Rogério Mesquita, um dos membros fundadores do Grupo Bagaceira de Teatro. E ao fazer isso, velar um artista do teatro do Nordeste, o grupo faz as vezes de uma Antígona que cobra, na própria experiência cênica, a memória daquele que se foi. E como tudo que está em cena é apresentado pela ordem da presentificação… a obra finda por tornar presente quem já não está mais aqui entre nós.
É também essa citação afetiva que torna a obra uma experiência singular para quem conheceu Rogério e, talvez, uma experiência mais distanciada para quem não sabe quem é a figura projetada ao final da encenação.
6
O inacabamento é prática e conceito que aparece na arte desde as vanguardas artísticas europeias, quando a crise da representação figurativa se instaurou e a atenção sobre a materialidade e os procedimentos tornaram visíveis os gestos de pintar, esculpir, teatralizar, dançar, tocar, entre outros. Ou seja, o inacabado não é uma “qualidade estética”, mas um efeito colateral de quando a arte tenta voltar a atenção para sua própria ontologia. Como quando os impressionistas tentaram pintar o que o olhar rápido conseguia distinguir a partir da luminosidade; e isso gera uma pintura com pinceladas evidentes e sem contornos definidos - o que foi amplamente criticada na época. Ou seja, toda cena que buscar teatralizar a própria teatralidade vai parecer incompleta, porque vai tender mais a uma expressão abstrata do que figurativa? O que consegue se sustentar como abstrato na obra do Bagaceira?
7
Mesmo numa tentativa de neutralizar os elementos visuais da encenação e de apresentar fragmentos de cena que enunciam desejos, ainda há muita atuação. O que aconteceria se os mesmos procedimentos de fragmentação e “pretensa neutralização” fossem aplicados nas vozes e nos trechos dançados? O que a radicalização do inacabamento em cena poderia revelar para a comunidade artística e para o próprio Bagaceira?
FICHA TÉCNICA
Dramaturgia e Direção: Rafael Martins
Elenco: Débora Ingrid, Isabella Cavalcanti, Rafael Martins, Ricardo Tabosa e Tatiana Amorim
Interlocução artística: Marcio Abreu
Participações especiais: Fernando Barbosa e Teodora Amorim
Direção de arte: Natália Parente
Trilha sonora original: Ayrton Pessoa Bob
Iluminação: Tatiana Amorim
Preparação corporal: Débora Ingrid
Direção de montagem e operação de luz: Ciel Carvalho
Operação de som: Jotacílio Martins
Direção de produção: Isabella Cavalcanti
Comunicação: Ricardo Tabosa
Design gráfico: Rafael Viana
Fotos: Alan Sousa
Apoio: Casa da Esquina e Porto Iracema das Artes
Realização: Grupo Bagaceira de Teatro