House Off Mama Queen

Por Fredda Amorim
01/12/2024

Esse texto é travessia e encontro, afet(A)ção e escrita que sai da pele; faz parte da cobertura crítica do Festival Recife do Teatro Nacional (PE), realizado entre os dias 21 de novembro e 01 de dezembro de 2024, que está sendo acompanhado criticamente pelo projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado. Fazem parte dessa cobertura es profissionais da crítica Heloísa Sousa (RN), Fredda Amorim (MG), Kil Abreu (SP) e Ivana Moura (PE). Outras críticas sobre esse mesmo festival podem ser acessadas nos sites do Cena Aberta e Satisfeita, Yolanda?.

 

O espetáculo Rei Lear, apresentado no Festival Recife do Teatro Nacional e dirigido por Ines Bushatsky, é uma ousada reinterpretação da clássica tragédia de Shakespeare. A Cia. Extemporânea, ao integrar a estética da cultura drag no cerne da narrativa, oferece uma versão do monarca que perde o império e a sanidade, mas que, no processo, se torna uma poderosa metáfora de resistência, poder e subversão. O que poderia ser uma simples releitura da obra shakespeariana se transforma em um campo vibrante de discussões contemporâneas sobre gênero, identidade e as dinâmicas de autoridade.

A utilização da estética drag vai além da superfície de um visual exagerado ou da simples busca por uma estética provocativa. A arte drag tem suas raízes na transgressão das normas de gênero e da performance, e nesse espetáculo ela se torna a chave para entender as relações de poder e a fragilidade das construções sociais que sustentam o drama de Rei Lear. Ao olhar para Shakespeare por meio do prisma da cultura drag, a Cia. Extemporânea propõe uma reflexão crítica sobre como a autoridade é forjada e desmontada, com uma interpretação radical da figura de Lear. Ele, que tradicionalmente representa o monarca absoluto, agora se vê através da lente da drag queen, uma figura que, por sua exuberância, é também profundamente vulnerável e, em certo sentido, efêmera.

A obra joga com o conceito de "poder performático", ou seja, o poder que não é dado, mas encenado. E essa abordagem traz à tona uma reflexão poderosa sobre como as aparências sustentam as relações de domínio, especialmente em tempos de crise de autoridade, como o que Lear vive em sua história. No palco, o monarca drag não é apenas um símbolo de grandiosidade e decadência, mas também uma expressão de resistência e transformação. A presença de Lear como uma figura "MAMA drag" não é apenas uma escolha visual, mas uma reinterpretação fundamental da autoridade e da fragilidade, explorando temas como etarismo e capacitismo, especialmente na maneira como o personagem é tratado por suas filhas. Deste modo a montagem também se conecta com a cultura ballroom, tradicionalmente associada à comunidade LGBTQIAPN+, que, ao longo das décadas, se tornou um espaço de resistência, afirmação e protagonismo. As disputas entre as filhas de Lear — Goneril, Regan e Cordelia — não são apenas conflitos de poder, mas também disputas de performance, um verdadeiro "BAILE" de tentativas de se afirmar em um jogo de aparências. Esse paralelo que percebo com a cultura ballroom, onde as performances visuais e as disputas de identidade estão sempre em jogo, eleva o espetáculo a um nível político e social muito mais profundo. O palco se transforma em uma verdadeira pista de batalha, onde as personagens buscam reconhecimento, seja por parte do pai, do público, ou da própria sociedade.

Este diálogo com a cultura ballroom e drag traz uma forte crítica social, sobretudo ao evocar as casas de performance, que historicamente nasceram nas periferias urbanas, muitas vezes associadas à resistência de pessoas negras e trans. As casas, que eram espaços de criação e competição, também funcionam como refúgios de resistência contra uma sociedade opressiva que persegue e aniquila corpas dissidentes. Ao usar essas influências, a Cia. Extemporânea coloca o teatro em um lugar de subversão política, onde a história de Shakespeare se atualiza, mas sem perder seu peso trágico. A apropriação da cultura drag e ballroom torna Rei Lear um palco de contestação, uma verdadeira subversão das normas de gênero e poder.

A força da montagem também está em seus figurinos e no trabalho de visagismo, com assinatura de Salomé Abdala, Malonna e Polly. Os trajes hiperbólicos e oníricos não são apenas adornos, mas parte de um comentário sobre o poder e sua fragilidade. Cada peça de vestuário e cada maquiagem em Lear e suas filhas refletem a tensão entre a imensidão da autoridade e a fragilidade humana. O visual de Lear como uma "mama drag", imponente e ao mesmo tempo vulnerável, traz uma reflexão sobre o quanto o poder, na verdade, está sempre sob o risco de desmoronar, dependendo de sua base de aparências.

Além disso, o elenco, composto por figuras renomadas no universo drag como Alexia Twister, Antonia Pethit e DaCota Monteiro, garante uma interpretação visceral e cheia de autenticidade. Cada ator, com sua presença carregada de significado, transforma a atuação em um manifesto político, social e cultural. A energia do elenco não se limita ao texto original de Shakespeare, mas cria uma camada extra de subversão que amplia as possibilidades de leitura do drama, transformando cada gesto e cada palavra em uma afirmação de resistência, presença e luta por visibilidade e espaço. O espetáculo, então, se expande para além de sua dramaturgia e se torna uma poderosa afirmação de identidade e um questionamento profundo sobre a hierarquia de poder.

No final, o Rei Lear da Cia. Extemporânea é mais do que uma simples releitura da obra de Shakespeare. Ele coloca em cena um diálogo entre a tradição e o contemporâneo, utilizando a arte drag para questionar as formas de poder e autoridade, enquanto celebra a subversão das normas sociais. O teatro, como a sociedade, está em constante transformação, e o espetáculo nos lembra de que o teatro sempre foi um espaço de provocação e reinvenção — um campo fértil onde questões de gênero, identidade e poder podem ser desafiadas e quebradas.

Em última análise, Rei Lear oferece uma reflexão complexa sobre como as construções sociais de gênero e poder se entrelaçam, e como a arte, em sua expressão mais crua e transformadora, é um instrumento de resistência. A drag queen não é uma identidade de gênero, mas uma expressão artística, uma forma de transformação e criação. Este espetáculo reafirma que a arte drag — em sua magnificência e transgressão — tem o poder de reformular o palco e, ao fazê-lo, reformular as próprias noções de poder, identidade e o que significa ser reconhecido em uma sociedade que constantemente marginaliza certos corpos e performances.

E não poderia deixar de dedicar esses escritos que saem da pele a todas as corpas TRAVA… às TRAVAS que correm com TRAVAS e a toda arte TRAVA que foi apagada em um país que, ironicamente, se coloca como um dos maiores palcos do mundo, mas que é também o país que mais mata travestis e transexuais no planeta até hoje. A arte TRAVA, a arte de resistência, é nossa, é potente, e merece ser reconhecida e celebrada. Que Rei Lear, com sua ousada subversão, também nos faça lembrar que o palco nunca será pequeno demais para as travas e para todas as expressões de identidade que têm sido historicamente marginalizadas, mas que hoje, com coragem e luta, ganham cada vez mais espaço. Que essa arte, essa potência, nunca deixe de pulsar.

 

Ficha Técnica

Direção: Ines Bushatsky

Elenco: Alexia Twister, Antonia Pethit, DaCota Monteiro, Ginger Moon, Lilith Prexeva, Maldita Hammer, Mercedez Vulcão, Thelores, Xaniqua Laquisha

Texto adaptado e assistência de direção: João Mostazo

Cenário: Fernando Passetti

Luz: Aline Santini

Figurino: Salomé Abdala

Visagismo: Malonna e Polly

Assistente de perucaria: Yuri Tedesco

Trilha sonora e operação de som: Gabriel Edé

Preparação vocal: Felipe Venâncio

Operação de luz: Pajeu Oliveira

Microfonista : Viviane Barbosa

Contrarregragem: Felipe Venâncio, Matias Ivan Arce
Costureiras: Caio Katchborian, Nana Simões, Salomé Abdala

Sapatos: Porto Free Calçados

Bordados: Alesha Bruke, Salomé Abdala

Fotos: Mariana Chama, Suka, Tetembua Dandara

Arte gráfica: Lidia Ganhito

Redes sociais: Mariana Marinho

Assistente de Produção: Gabriela Ramos

Direção de Produção: Tetembua Dandara

Assessoria de Imprensa: Pombo Correio

 

Clique aqui para enviar seu comentário