Por Heloísa Sousa
10/12/2024
Esse texto faz parte da cobertura crítica do Festival Recife do Teatro Nacional (PE), realizado entre os dias 21 de novembro e 01 de dezembro de 2024, que está sendo acompanhado criticamente pelo projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado. Fazem parte dessa cobertura es profissionais da crítica Heloísa Sousa (RN), Fredda Amorim (MG), Kil Abreu (SP) e Ivana Moura (PE). Outras críticas sobre esse mesmo festival podem ser acessadas nos sites do Cena Aberta e Satisfeita, Yolanda?.
O encontro entre o teatro e literatura é tão antigo quanto o próprio fazer teatral. Apesar da teatralidade não corresponder a uma tradução das palavras literárias e nem ter surgido dessa prática, o caminho que as aproximou fez cristalizar uma percepção em torno do teatro que o tornou dependente das narrativas e de suas formas de apresentação. Esse encontro segue sendo um desafio e um desejo dos artistas do teatro que buscam adaptar para a matéria teatral as mais diversas formas literárias e ainda seguir experimentando sua própria especificidade a partir disso. Mas, talvez seja significativo pensar o que o teatro pode oferecer ao espectador que ultrapasse as possibilidades estéticas já oferecidas pela leitura de um livro.
Ao discorrer sobre a transformação das narrativas literárias em cenas, o cineasta russo Andrei Tarkovsky fala sobre perceber, na própria experiência literária, o que há de potencialmente cinematográfico (e em nosso caso, de teatral) ali nas palavras escritas, nas personagens descritas e nas situações narradas. Dessa forma, o imperativo não deveria ser o desejo do artista/cineasta/encenador, mas sim a percepção de algo latente na própria obra literária, como se o texto estivesse clamando pela sua encenação para se materializar ainda mais como obra artística.
Em Recife, “O Livro das Personagens Esquecidas”, do autor pernambucano Cícero Belmar, ganha uma adaptação com dramaturgia e encenação de José Manoel Sobrinho e atuação de Murilo Freire na peça "Esquecidos por Deus". O livro é uma coletânea de vinte e cinco contos que misturam ficção e realidade, personagens humanas e animais.
“Nos contos, distribuídos em 144 páginas, desfilam personagens que vão de Dom Helder(1909-1999) a Miguel Arraes (1916-2005), de Julião (1915-1999) ao Padre Henrique (1940-1969), de Greta Garbo (1905 a 1990) a Marlene Dietrich (1901-1992). A presença de outros, como Fidel Castro, fica apenas subentendida na mente do leitor. São pessoas reais, que se foram, mas cuja presença ainda está muito perto de nós. Os quatro primeiros têm em comum o fato de terem sido perseguidos durante a ditadura implantada no país, em 1964. Dom Hélder permaneceu no Brasil, liderando a luta em defesa dos direitos humanos, mas a simples citação ao seu nome era vetada na imprensa. Arraes e Julião amargaram décadas de exílio, enquanto o sacerdote foi assassinado pelas forças da repressão. Já Dietrich e Garbo estão eternizadas nas telas do cinema em preto e branco. E no imaginário popular”. (Trecho extraído da matéria publicada no https://oxerecife.com.br/o-livro-das-personagens-esquecidas/)
A experiência do autor como jornalista também atravessa o tom narrativo dos contos, segundo a matéria, além de influenciar nas escolhas temáticas ao direcionar sua atenção para personagens marginalizadas ou esquecidas, sem deixar as habilidades de auto referência cultural que marcam as obras artísticas de tantos pernambucanos.
A busca pela temática e forma de narrativa do livro é uma ação impulsionada pela experiência teatral, que apresenta o próprio como um objeto alçado em um pedestal. Saio do teatro com imensa curiosidade por tentar compreender algo da obra, muito mais pelo desejo de alcançar algo da experiência compartilhada do que apenas pelo interesse engajado por aquele momento. Foi nessas procuras por mais detalhes sobre o livro que percebi como o tema do esquecimento e da memória é caro para o autor e como isso é marcado na encenação pela forma como as personagens apresentam uma corporalidade atípica e narram situações que parecem nos fazer reviver algum passado.
Em um chão repleto de folhas secas, observamos ao centro um caixão de madeira que também nos lembra uma embarcação. O ator Murilo Freire encarna, então, múltiplos personagens, usando apenas a fisicalidade do seu corpo e um simples shorts preta - semelhante à vestimenta usada pelo ator polonês Ryszard Ciéslak na peça “O Príncipe Constante” (1965) de Jerzy Grotowski e em alguns vídeos de treinamento e demonstração técnica desse mesmo ator. As vestes que marcam a estética do Teatro Pobre, funcionam de modo semelhante aos collants do balé clássico ou da experimentações rítmicas de Dalcroze que se aproximavam da experiência da nudez para dar ênfase à observação das articulações, musculatura e envergadura dos corpos. O objetivo é tornar visível a teatralidade, a presença cênica e a formação da representação diante do espectador, através de uma rearticulação e composição das posições corporais. Murilo Freire se desloca pelo espaço, entra e sai da estrutura central enquanto personifica diferentes personagens. Outros objetos de madeira compõem o espaço cênico e nos fazem lembrar de um velório dentro de uma igreja, onde a referência direta à religiosidade cristã parece querer friccionar as histórias com as possibilidades moralistas de percepção do público sobre as “personagens esquecidas” e encenadas ali.
As partituras físicas e vocais do ator baseiam toda a encenação, se sobrepondo a qualquer transformação sonora, imagética ou cenográfica, sendo ainda narradas em primeira pessoa. A questão de encruzilhada dessa obra, para além da aposta em um excesso de exposição da capacidade física do ator, é o quanto a própria fisicalidade disputa muito espaço com o texto narrado, além de não conseguir variar o suficiente para tornar visível a transição entre uma figura e outra - as diferenças nas partituras vocais e corporais, apesar do esforço, não são suficientes para construir uma diferenciação sólida na recepção do público, tornando a obra ininteligível em um primeiro momento.
Dizer dessa obra enquanto afetação pelas personagens materializadas parece um exercício muito difícil, quando elas parecem desenhadas de modo tão borrado e com poucas fronteiras. Diante disso, podemos pensar sobre o que acontece quando a ênfase no esforço técnico do ator parece se sobrepôr à teatralização e a fruição da obra, ao invés de servir a composição de algum ápice da experiência estética. Junto a isso, o apego ao material literário original alçado cenograficamente à sacralidade (posicionado sob um pedestal) faz com que a adaptação dramatúrgica pareça uma simples transposição do que se lê para o que se diz em cena, como quem realiza uma leitura dramatizada e em voz alta. Mesmo que haja potência de teatralidade nos escritos, a investigação em torno do ritmo, das formas de representação e da presentificação das memórias e seus desenhos no tempo precisariam ser tomadas como investigações artísticas mais verticais que superassem a mímese.
Ao terminar de assistir a encenação “Esquecidos por Deus” e contemplar os aplausos direcionados à obra sendo compartilhados com o autor da peça também presente na plateia, o que decanta em meu corpo como espectadora é menos a obra em si e mais as escolhas de processo que antecedem sua apresentação. Penso que o que fica - e isso sim, desafio o esquecimento - é essa auto referência tão fiel e recorrente nos artistas pernambucanos, que direcionam o olhar para suas próprias produções e veem ali espaços de continuidade; é uma característica marcante desta capital nordestina e que aí reside uma prática, talvez, fundamental como estratégia de afirmação e historicidade do pensamento em arte produzido pelas cidades do Nordeste.
Foto do Banner: Tayná Nunes
FICHA TÉCNICA
Textos - Cícero Belmar
Encenação, Dramaturgia e Iluminação - José Manoel Sobrinho
Concepção de Texto - José Manoel Sobrinho e Murilo Freire
Atuação - Murilo Freire
Assistente de Direção de arte, Mídias Sociais e Operação de Som - Gabi Nunnes
Direção Musical, Composição de Trilha sonora, Guitarra e Baixo - Fellipe Barnabé
Engenharia de Som e Bateria - Sam Silva
Técnico de Gravação - Raphael Urbano
Confecção de Cenário - Melé de Acaú
Confecção de Figurino e Adereço - Ivone Nunes
Consultoria de Corpo - Breno Liberato
Fotografia - Tayná Nunes e Sergio Ricardo
Produção Executiva e Assessoria de Imprensa - Sheilla Martins
Produção geral - Murilo Freire e Gabi Nunnes