Por Heloísa Sousa
10/12/2024
Esse texto faz parte da cobertura crítica do Festival Recife do Teatro Nacional (PE), realizado entre os dias 21 de novembro e 01 de dezembro de 2024, que está sendo acompanhado criticamente pelo projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado. Fazem parte dessa cobertura es profissionais da crítica Heloísa Sousa (RN), Fredda Amorim (MG), Kil Abreu (SP) e Ivana Moura (PE). Outras críticas sobre esse mesmo festival podem ser acessadas nos sites do Cena Aberta e Satisfeita, Yolanda?.
O que Antígona significa para o imaginário brasileiro?
Ou ainda, o que as tragédias gregas ainda têm a nos dizer, em nosso chão e em nosso tempo?
O interesse pelas dramaturgias gregas clássicas é tão reincidente no teatro ocidental quanto o interesse pelas histórias de outras personalidades iconizadas pela história do teatro. Os formatos trágicos, na passagem do destino marcado pelos deuses ao destino desenhado por escolhas, sublinham a transformação da percepção antiga à percepção moderna sobre o humano. Essas narrativas escritas, enquanto as possibilidades poéticas e verbais das linguagens também se escreviam, findaram por marcar não apenas a literatura, mas também nosso imaginário e toda uma estruturação psíquica arquetípica que tenta explicar os fluxos conscientes e inconscientes da humanidade. A observação das repetições das tragédias e suas atualizações são tão fortemente atrativas que as remontagens não cessam de se apresentar como escolhas de diversos artistas. A questão não está apenas em devolver essas tragédias aos espaços da cena, mas em materializar cenicamente outras formas de observação dessa mesma tragédia. Ou seja, é menos sobre reconhecer uma tragédia no palco e mais sobre re-conhecer e des-conhecer a tragédia e o palco nessa experiência, desfetichizando a dramaturgia clássica e tornando justificável sua rememoração.
Na programação desta edição do Festival Recife do Teatro Nacional, a atriz Márcia Luz do Grupo Luz Criativa (PE) apresentou “Antígona - A Retomada” com direção de Quiercles Santana.
Nesse mesmo festival, o Grupo Magiluth, também pernambucano, apresentou “Édipo REC” a partir da tragédia grega “Édipo Rei” de Sófocles. Quem assistiu as duas obras pode ter notado que estava diante de uma continuidade do mesmo autor, pois Antígona é a filha de Creonte, personagem que aparece em Édipo como irmão de Jocasta e sucessor do trono de Tebas, após a morte do rei. Creonte representa o poder do Estado que busca manter suas normas rígidas e antigas, tendo sua autoridade questionada por sua própria filha quando esta reivindica o direito de enterrar seu irmão morto em campo de batalha. Creonte, que tinha mais dois filhos que digladiam entre si, autoriza o enterro de apenas um deles, acusando o outro de traição e seguindo com as regras políticas que ele insiste em aplicar. Antígona, em nome de seu próprio afeto e clamando pela humanidade de seu irmão, pelo direito ao luto e ao ritual de sepultamento, desafia seu pai e questiona as normas expondo sua própria fragilidade política. A figura mítica de uma mulher que desafia, sozinha e com sua oralidade, uma cidade inteira.
Antígona não é apenas a representação da disputa por direitos, mas é também a própria personificação da prática da crítica, ao tornar objeto de debate algo pré-determinado apresentando argumentações que exigem a revisão da norma. Antígona é também aquela que não deixa esquecer ou passar ileso, aquela que se recusa a naturalizar o equívoco apenas por ser rotineiro e normativo. Ela é a figura que sublinha a dimensão cultural do humano e que subverte o discurso como matéria de rearticulação. Não à toa, é uma narrativa remontada tantas vezes nos últimos anos e no Brasil, um país que sofre com apagamentos históricos constantes que nos faz seguir assombrados pelos perigos de retorno do passado. A questão da memória é um problema nevrálgico em nosso país e talvez, por isso, esse assunto apareça tantas vezes no teatro brasileiro como quem tenta mexer e cavucar seus mortos -, mortos esses que muitas vezes são corpos desaparecidos. O ato de velar e enterrar faz-se necessário para presentificar vidas, histórias e lutas.
Nessa montagem, Márcia Luz atua Antígona como um monólogo com ênfase na defesa da personagem em torno do seu argumento. Com uma forte presença cênica em articulação poética com os demais elementos cenográficos como a iluminação, a trilha sonora tocada ao vivo e, especialmente, os figurinos, trocados em pontos cruciais da encenação que marcam mudanças na personagem; os artistas transformam “Antígona” em um discurso direto, ou em uma defesa jurídica ao público. Essa centralidade na personagem parece ser uma escolha derivada do protagonismo óbvio que a figura tem no texto original que se fortalece pelas compreensões já disseminadas em torno dos significados e representações simbólicas dessa personagem. Sua presença parece bastar e se sobrepor ao contraste original desenhado nos diálogos entre ela e as demais personagens, o que finda por simplificar a tragédia de Antígona. O que perdemos diante dessa simplificação? O que há na tragédia de Antígona que ainda não conseguimos observar nas montagens, até então? O que Antígona pode oferecer ao teatro brasileiro, não apenas como assunto, mas como forma teatral? O que significa tragedificar uma obra teatral como procedimento cênico?
A lacuna que se apresenta nesta versão de Antígona é menos sobre a composição teatral bem estruturada pelo grupo e mais sobre o que se torna visível a partir dela. Em determinado momento, um corte cênico nos coloca diante da atriz, distanciada de sua personagem, e que decide trazer alguns relatos pessoais que falam de seu encontro com a personagem trágica no início de sua trajetória artística, o que coincide também com seu encontro pessoal com o teatro. Apesar do apelo emocional em torno desse momento, a cena parece oferecer à própria montagem uma justificativa individualista em torno da escolha por retomar Antígona, como se a personagem operasse como um gatilho para a atriz reencontrar o teatro e sua própria história. Mesmo os paralelos entre sua autopercepção como sujeito político no mundo e a figura da Antígona em si apresentam uma abordagem reincidente no teatro, que mostra Antígona como a grande representação de mulher que desafia seu lugar de silêncio e subserviência. Para tamanha força de atuação, presença e vocalidade da atriz Márcia Luz cabia muito mais… cabia ainda o invisível de Antígona, cabia as relações ainda não tateadas entre essa figura grega e uma atriz nordestina, cabia as linhas engasgadas em torno da habilidade crítica dessa figura retomada em nossa contemporaneidade.
FICHA TÉCNICA:
Diretor e Dramaturgo – Quiercles Santana
Atriz e Coordenação de Produção – Márcia Luz
Produção Executiva – Iara Campos
Diretor Musical – Kleber Santana
Designer de Luz – Natalie Revorêdo