Por Fredda Amorim
12/12/2024
Esse texto é travessia e encontro, afet(A)ção e escrita que sai da pele; faz parte da cobertura crítica do Festival Recife do Teatro Nacional (PE), realizado entre os dias 21 de novembro e 01 de dezembro de 2024, que está sendo acompanhado criticamente pelo projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado. Fazem parte dessa cobertura es profissionais da crítica Heloísa Sousa (RN), Fredda Amorim (MG), Kil Abreu (SP) e Ivana Moura (PE). Outras críticas sobre esse mesmo festival podem ser acessadas nos sites do Cena Aberta e Satisfeita, Yolanda?.
O espetáculo Sinapse Darwin, de 2021, dirigido e escrito por César Ferrario, é uma daquelas experiências teatrais que se afastam completamente da tradicional narrativa linear e se propõe a transformar o palco em um espaço de imersão e reflexão profunda. O que chama a atenção logo de início é a forma como a peça ressignifica a biografia de Charles Darwin, o pai da teoria da evolução. Ao invés de seguir o caminho mais óbvio, que seria o de uma linha do tempo cronológica, o espetáculo constrói sua narrativa de maneira fragmentada e poética, desafiando a estrutura convencional do teatro e criando uma abordagem não apenas sobre Darwin e sua obra, mas sobre a própria construção do conhecimento.
A principal proposta do espetáculo é, sem dúvida, a forma como ele lida com o tempo e a memória. Ao invés de uma sequência cronológica, Sinapse Darwin se desenrola por uma série de momentos desconectados, que se entrelaçam e formam uma tessitura não-linear. A vida de Darwin, sua infância, seu amadurecimento intelectual, suas viagens e suas descobertas científicas, são apresentadas como fragmentos de um quebra-cabeça que, ao serem organizados, acabam revelando algo maior sobre a complexidade do próprio pensamento do cientista. Esse tipo de estrutura cria uma sensação de que o tempo em si não é estático, mas fluido, em constante movimento, exatamente como a própria teoria da evolução, que defende que as espécies se transformam e se adaptam ao longo do tempo.
Esse tratamento não convencional da biografia permite ao público não apenas compreender as grandes linhas do pensamento de Darwin, mas também mergulhar em seus dilemas existenciais e filosóficos. A peça nos faz pensar nas angústias que acompanharam as descobertas científicas de Darwin, como o impacto de suas ideias sobre a religião, a sociedade e o próprio lugar do ser humano no mundo. Em vez de ser uma simples explicação sobre a teoria da evolução, o espetáculo se torna uma meditação sobre o processo de descoberta científica e sobre as incertezas e contradições que permeiam essa jornada intelectual.
Outro ponto que se destaca em Sinapse Darwin é a forma como a peça dialoga com outras figuras e correntes de pensamento que influenciaram e, de certa forma, anteciparam as ideias de Darwin. A obra não apenas se limita a contar a história de um homem, mas amplia o debate sobre as origens das espécies e as teorias que precederam Darwin. Pensadores como Al-Jahiz, filósofo árabe que já no século IX especulava sobre a evolução das espécies, e Erasmus Darwin, avô de Charles Darwin, que também refletia sobre questões evolutivas, são trazidos à tona, criando uma rede de conexões e influências que mostram que a teoria da evolução não é uma ideia isolada, mas parte de um processo histórico mais amplo.
Essa ampliação do contexto histórico é uma das grandes virtudes da peça, pois ela não se limita a contar a história de Darwin de forma isolada, mas insere suas descobertas em um campo de debates que já vinha se formando há séculos. Isso não só enriquece o espetáculo, mas também faz com que o público perceba que a ciência é um campo em constante diálogo, onde as ideias estão sempre se desafiando e se transformando.
Além da dramaturgia e da narrativa, a cenografia de Sinapse Darwin é um dos maiores trunfos da peça. A Casa de Zoé, grupo responsável pela produção, conseguiu criar um espaço cênico que não é apenas um pano de fundo, mas um verdadeiro protagonista da narrativa. O cenário é composto por uma estrutura impressionante de catracas, roldanas, mecanismos e sintetizadores, que evocam um ambiente de laboratório e experimentação científica. Mas essa mesma estrutura também faz com que o espaço se torne dinâmico, quase como se estivesse vivo, pulsando conforme a narrativa se desenrola. Esse movimento constante da cenografia não só reforça o caráter mutável e adaptável da teoria da evolução, mas também cria uma atmosfera lúdica e experimental, que interage com os corpos dos atores e com o público de uma maneira única.
É quase impossível não se deixar levar pela imersão proporcionada pela cenografia. A montagem parece desmaterializar as fronteiras entre o espaço cênico, os objetos e os corpos dos atores. A sensação que temos é de que o cenário não é um simples elemento visual, mas sim uma extensão do próprio pensamento de Darwin, que se reflete no movimento das máquinas, nos objetos cênicos que se conectam entre si e com os corpos em cena. Em certos momentos, parece que a peça não tem um começo ou um fim definidos: o cenário se mistura ao texto, aos atores e ao som, criando uma experiência que é difícil de categorizar, mas que certamente deixa uma marca profunda em quem a assiste.
Foto de Vivan Gradela
Falando em som, a trilha sonora de Sinapse Darwin, executada ao vivo sob a direção musical de Caio Padilha, é outro elemento fundamental para a construção dessa experiência sensorial. O som não é apenas um acompanhamento para os momentos mais emocionais da peça; ele é, de fato, uma extensão da narrativa. A música cria atmosferas que refletem os estados internos de Darwin, seus momentos de dúvida, de reflexão e de descoberta científica. O uso de sintetizadores e outros instrumentos eletrônicos contribui para essa sensação de transição constante, como se o próprio espetáculo estivesse em um processo de adaptação, fluindo entre diferentes momentos e paisagens sonoras.
A trilha sonora também tem a função de acentuar a transitoriedade e a imprevisibilidade da própria teoria da evolução. Assim como as espécies, o som se transforma e se adapta ao longo da peça, refletindo a ideia central de que a vida está em constante mudança. Esse uso do som como um elemento imersivo, que dialoga com a cenografia e a dramaturgia, é um dos maiores acertos da peça, criando uma experiência sensorial completa, que faz o espectador não apenas assistir à história, mas vivê-la de forma intensa.
O trabalho da Casa de Zoé, que já havia mostrado seu potencial com outras produções, como Meu Seridó (2017) e Clenyldes & Clenôrys (2024), é um exemplo claro de como o teatro contemporâneo pode se reinventar ao misturar estética, ciência e filosofia de maneira vibrante e inovadora. A escolha de um tema científico como base para o espetáculo é ousada, mas ao mesmo tempo, acessível, pois a peça consegue desmistificar o pensamento científico e trazê-lo para o palco de forma poética e visualmente rica. Isso não significa que a profundidade intelectual do espetáculo seja sacrificada em prol de uma abordagem mais acessível. Pelo contrário, Sinapse Darwin consegue ser ao mesmo tempo profundamente intelectual e sensorialmente envolvente, sem perder o caráter crítico e reflexivo.
O uso do grammelot em Sinapse Darwin é uma ferramenta criativa e simbólica que contribui para a construção de uma linguagem universal e sensorial no espetáculo. Ao misturar sons, fonemas e palavras de diferentes línguas, o grammelot ultrapassa a comunicação verbal tradicional, refletindo a ideia de que o conhecimento e a evolução não se limitam a um único sistema de linguagem. Esse recurso amplia a expressão emocional e física dos atores, tornando a comunicação mais visceral e intuitiva, enquanto dialoga com a proposta de Sinapse Darwin de quebrar convenções e explorar a adaptação e transformação, tanto no plano científico quanto artístico. Ele sugere que a compreensão do mundo vai além das palavras e se conecta diretamente à experiência sensorial e emocional compartilhada pelo público.
O trabalho de César Ferrario, na direção e dramaturgia, é notável pela forma como ele consegue equilibrar esses diferentes aspectos. Sinapse Darwin não é apenas um espetáculo sobre a vida de Darwin; é um convite à reflexão sobre como o conhecimento é construído, sobre as limitações e os desafios da ciência, e sobre as tensões entre razão e emoção. Ao fazer isso, a peça também provoca o público a pensar sobre o nosso próprio momento histórico, sobre como as ideias evoluem, se transformam e se adaptam com o tempo. Em última análise, o espetáculo nos faz questionar não apenas o legado de Darwin, mas também a forma como nos relacionamos com o conhecimento e a ciência no mundo contemporâneo.
Sinapse Darwin é, sem dúvida, um exemplo de como o teatro pode ser um espaço de diálogo entre diferentes campos do saber, como a ciência, a filosofia e a arte, criando uma experiência que é ao mesmo tempo educativa e emocional. Através de sua dramaturgia, cenografia, música e interpretação, a peça nos oferece uma jornada de descoberta que vai muito além da história de um homem e sua teoria, tornando-se um verdadeiro estudo sobre a natureza do conhecimento, da mudança e da evolução. E, em tempos em que a ciência e a razão frequentemente são colocadas em xeque, Sinapse Darwin nos lembra da importância de refletir sobre o que sabemos, como sabemos e, acima de tudo, como nossas ideias continuam a evoluir.
Fotos de Marcos Pastich.
Ficha Técnica
Roteiro Dramatúrgico e Direção – César Ferrario
Elenco – Titina Medeiros, Nara Kelly, Múcia Teixeira, Caio Padilha, Dudu Galvão, Igor Fortunato, Toni Gregório e Yves Fernandes
Contrarregras – Juca Santos e Flávio Torreão
Direção de Arte – João Marcelino
Direção Musical – Caio Padilha
Trilha Sonora Original – Caio Padilha, Yves Fernandes e Toni Gregório
Direção de Movimento – Dudu Galvão
Iluminação e Coordenação Técnica – Rogério Ferraz
Cenotécnica – Juca Santos, Flávio Torreão e Anderson Galdino (Nando)
Produtor de Arte e Operação de Som – Janielson Silva
Assistentes de Direção de Arte – Irapuan Júnior, Victor D’melo e Paulo Lima
Costureira – Fátima Dantas e Nely Hazbun
Ilustração e Designer Gráfico – FilipeAnjo
Registro Fotográfico – Brunno Martins e Tiago Lima
Site – Referência Comunicação
Assessoria de Imprensa – Sollar Comunicação
Social Media – AKA Club Mídia
Stand in – Ananda K
Estagiário – Paulo Demétrio
Produção Executiva – Talita Yohana
Elaboração do Projeto – César Ferrario, Arlindo Bezerra, Titina Medeiros, Talita Yohana e FilipeAnjo
Agenciamento – Arlindo Bezerra e Titina Medeiros
Produção Casa de Zoé – Titina Medeiros
Assistência de Produção e Cattering – Manu Azevedo
Coordenação de Produção – Arlindo Bezerra