Pequeno Monstro

Por Fredda Amorim
22/12/2024

Esse texto é travessia e encontro, afet(A)ção e escrita que sai da pele; faz parte da cobertura crítica do Festival Recife do Teatro Nacional (PE), realizado entre os dias 21 de novembro e 01 de dezembro de 2024, que está sendo acompanhado criticamente pelo projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado. Fazem parte dessa cobertura es profissionais da crítica Heloísa Sousa (RN), Fredda Amorim (MG), Kil Abreu (SP) e Ivana Moura (PE). Outras críticas sobre esse mesmo festival podem ser acessadas nos sites do Cena Aberta e Satisfeita, Yolanda?.

 

Em Pequeno Monstro, Silvero Pereira se aprofunda nas feridas da sociedade brasileira ao abordar as violências que marcam a vida de indivíduos LGBTQIA+. O espetáculo, que transita entre o pessoal e o coletivo, é uma denúncia feroz contra a homofobia, o bullying e a marginalização. Em um ambiente árido de dor e resistência, Silvero não apenas expõe suas próprias cicatrizes, mas cria uma reflexão sobre a brutalidade que a sociedade impõe aos corpos considerados “desviantes”. A peça, inspirada em um conto de Caio Fernando Abreu, revela a violência cotidiana e os monstros gerados pela exclusão social, mas também sugere uma possibilidade de resistência através da arte.

Silvero Pereira, reconhecido no cinema e na televisão por produções como as novelas A Força do Querer (2017) e Pantanal (2022), e pelo aclamado filme Bacurau (2019), se distingue por não se esquivar de temas espinhosos. Ao contrário de muitos artistas populares, ele usa seu status para dar visibilidade às questões profundas, como a realidade vivida pela comunidade LGBTQIA+, muitas vezes ignorada ou minimizada. Sua trajetória pessoal de dor e superação ganha forma no palco, onde ele ressignifica os traumas da infância, como o bullying homofóbico e o abuso sexual sofrido aos sete anos. Ao expor essas experiências, ele transforma o sofrimento em força, criando um espaço de confronto e reflexão para o público.

A peça, porém, não é apenas um relato pessoal de Silvero. O espetáculo é fruto de uma pesquisa profunda, realizada ao longo de sete anos, que mistura suas memórias com histórias de outras vítimas de violência. A dramaturgia fragmentada, que mescla o íntimo e o coletivo, provoca o espectador a questionar as fronteiras entre o individual e o social. Essa estrutura desafia a plateia a refletir sobre as responsabilidades compartilhadas nas violências que afetam a subjetividade dos corpos LGBTQIA+. A peça exige uma reflexão ativa sobre como todos participam, direta ou indiretamente, da construção de um mundo que marginaliza aqueles que fogem das normas estabelecidas.

Embora Pequeno Monstro não seja uma peça de militância explícita, como o próprio Silvero define, ela abre espaço para que o público se envolva com a história e, por consequência, com a realidade daqueles que enfrentam a exclusão. O ator não apenas expõe suas feridas, mas também oferece um processo de cura, que vai além da simples denúncia. Para Silvero, o teatro sempre foi um campo de expurgo, onde ele consegue transformar sua dor em arte. Em um dos momentos mais intensos da peça, ele denuncia a hipocrisia da sociedade brasileira, que permite crimes como a pedofilia, mas condena a homossexualidade. Essa crítica, pontuada por ironia, expõe a contradição moral que ainda permeia grande parte da população.

Em termos de encenação, Pequeno Monstro se destaca por seu formato experimental. A cenografia de Dina Salem Levy cria um ambiente minimalista, com uma arena de plástico que remete a uma instalação de arte, enquanto a bateria no fundo do palco imprime um ritmo de tensão constante à performance. O trabalho de iluminação de Sarah Salgado e Ricardo Vivian intensifica o efeito de imolação e dor, ampliando a sensação de desconforto e reflexão. Essa construção estética transforma o espetáculo em um jogo cênico que vai além da autobiografia, explorando a dor coletiva e individual, e se permitindo intercalar as feridas de Silvero com as de outras vítimas de violência.

A peça também faz uso de referências literárias, musicais e jornalísticas, criando uma trama densa em que o ator e o personagem se confundem. Silvero mistura suas memórias da infância no interior do Ceará com a juventude marcada pelas descobertas de sua identidade sexual e as violências decorrentes do machismo e da homofobia. A mensagem de Pequeno Monstro é pontual: é preciso encarar as monstruosidades criadas pela intolerância e confrontar os agressores. A sociedade precisa compreender que a verdadeira monstruosidade não está naqueles que se desviam da norma, mas em uma estrutura que impõe suas verdades de forma violenta e opressiva.

O título da peça, Pequeno Monstro, carrega consigo a metáfora da monstruosidade historicamente atribuída aos corpos LGBTQIA+, um estigma construído a partir do medo e da intolerância. Silvero subverte essa visão, apresentando o monstro não como a pessoa que se desvia da norma, mas como a sociedade que impõe padrões de comportamento a qualquer custo. Essa perspectiva ressoa com a ideia de "corpos monstruosos" defendida em Corpa Monstra na Cena Contemporânea, onde se reivindica o lugar de "monstruosidade" imposto pela marginalização, transformando a diferença em potência e resistência. Assim, Pequeno Monstro não apenas denuncia, mas celebra a diferença, utilizando a arte como um campo de transformação, onde a monstruosidade se torna um símbolo de liberdade e afirmação de identidade.

Por fim, é essencial ressaltar que, embora a peça tenha um caráter crítico e de denúncia, Pequeno Monstro vai além de uma interpretação exclusivamente política. Silvero Pereira busca algo mais amplo: a potência da arte de transformar, de tocar as pessoas e, talvez, inspirar mudanças. O espetáculo, mais do que um simples relato de falhas e injustiças, é uma tentativa de cura, propondo que todos enfrentem coletivamente as violências que nos afligem.

Em um país onde a violência contra a população LGBTQIA+ é alarmante, Pequeno Monstro se apresenta como um grito necessário, uma resistência artística e um convite à reflexão. Silvero, com sua coragem e ousadia, não apenas expõe suas feridas, mas nos desafia a olhar para as nossas próprias e entender que, por mais monstruoso que seja, o que realmente precisa ser transformado é a sociedade que ainda vê a diferença como uma ameaça.



 

Ficha Técnica:

Direção: Andreia Pires
Dramaturgia e Atuação: Silvero Pereira
Cenografia: Dina Salem Levy
Desenho de Luz: Sarah Salgado e Ricardo Vivian
Desenho de Som: Arthur Ferreira
Criação Audiovisual: Alice Cruz
Trilha Sonora Original: Wallace Lopes
Figurinista: Kallil Nepomuceno
Assistência de Cena: Tina Reinstrings e Juracy Oliveira
Assistente de Operação: Gabriel Salsi
Operador de Luz: Walace Furtado
Operadora de Som e Projeção: Luana Della Crist
Coordenador de Palco: Iuri Wander
Cenotécnica: Michele Souza e Walquer Sobral | MW Serviços Cenotécnicos Ltda
Consultoria de Acessibilidade: Cristiane Muñoz
Assessoria de Comunicação: Pedro Neves
Social Media: Ricardo Oliveira
Designer Gráfico: Karin Palhano
Fotos: Tainá Cavalcante
Quintal Produções:
Direção de Produção: Verônica Prates
Coordenação de Projetos: Valencia Losada
Produção Executiva: Camila Camuso
Assistente de Produção: Dandara Lima

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