Por Fredda Amorim
22/12/2024
Esse texto é travessia e encontro, afet(A)ção e escrita que sai da pele; faz parte da cobertura crítica do Festival Recife do Teatro Nacional (PE), realizado entre os dias 21 de novembro e 01 de dezembro de 2024, que está sendo acompanhado criticamente pelo projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado. Fazem parte dessa cobertura es profissionais da crítica Heloísa Sousa (RN), Fredda Amorim (MG), Kil Abreu (SP) e Ivana Moura (PE). Outras críticas sobre esse mesmo festival podem ser acessadas nos sites do Cena Aberta e Satisfeita, Yolanda?.
O espetáculo 2 Mundos, da Companhia de Teatro Lumiato, é uma experiência sensorial e visual que convida o público a refletir sobre a colonização das Américas, seus impactos e como as relações de poder dessa época continuam a se perpetuar nos dias de hoje. A partir do encontro entre duas culturas contrastantes — a dos colonizadores e a dos colonizados —, a peça estabelece um diálogo entre passado e presente, criando paralelos entre os processos de dominação colonial e as lutas pela preservação das identidades culturais.
O ponto de partida de 2 Mundos é o choque cultural resultante do encontro entre os invasores e as populações indígenas. Ao optar por uma narrativa que dispensa a palavra como principal elemento, a companhia mergulha no teatro de sombras, utilizando uma estética cubista que fragmenta a realidade e ressignifica as imagens projetadas. Nesse processo, a ausência da fala se torna uma força expressiva, permitindo que os gestos e as sombras transmitam mais do que qualquer discurso verbal. Essa escolha remonta a um teatro de imagens, em que cada cena se constrói a partir de luzes, sombras e sons, criando uma atmosfera imersiva que coloca o espectador no centro da ação.
O teatro de sombras, nesse contexto, vai além de uma técnica, funcionando como um método de reconstrução da memória histórica, que reflete as tensões, os medos e as aspirações das culturas em confronto. As figuras projetadas nas paredes e tecidos, com formas distorcidas e angulares, evocam a estética cubista, intensificando a sensação de ruptura e desintegração imposta pela colonização às sociedades indígenas. Os atores Soledad Garcia e Thiago Bresani manipulam retroprojetores e lanternas, criando um jogo dinâmico de luzes e sombras que se move pelo espaço, gerando uma fluidez que envolve o espectador e o faz acompanhar cada transição de forma imersiva. Em certos momentos, essas imagens ganham tridimensionalidade, transitando de tela para tela.
O que emerge desse confronto entre mundos aparentemente opostos é a humanidade que permeia ambos os lados. O espetáculo não apresenta apenas os invasores e os invadidos, mas também as emoções, os desejos e as motivações mais profundas de cada grupo. A morte de um jovem no clímax do conflito serve como ponto de reflexão sobre os verdadeiros custos de uma guerra — a luta pela vida, pela identidade e pela sobrevivência. A partir dessa tragédia, surge uma nova esperança, sugerindo que, mesmo nos momentos mais sombrios de opressão, há espaço para o renascimento e a resistência.
Além do impacto visual, a música desempenha um papel essencial na criação de uma conexão íntima entre atores e público. Ela vai além de uma simples trilha sonora, funcionando como uma extensão das emoções presentes no palco, ajudando a estabelecer uma atmosfera de tensão, melancolia e, por vezes, esperança. O uso de recursos audiovisuais, como retroprojetores e lâminas transparentes, amplifica a experiência sensorial e fortalece a conexão do público com os sentimentos expressos pelas sombras e gestos dos atores. Esses elementos visuais criam uma interação dinâmica entre luz, imagem e movimento, transformando o espaço cênico e expandindo as percepções sensoriais. Como observou Bresani, isso permite que o espectador se torne parte da cena, circulando entre os atores e vivendo a performance de forma mais próxima e envolvente.
2 Mundos, portanto, propõe uma imersão total, que vai além da simples observação de um evento cênico. Ao convidar o público a se deslocar pelo espaço, o espetáculo quebra a barreira tradicional entre palco e plateia, proporcionando uma experiência mais direta e visceral. A obra não apenas narra a história da colonização, mas permite que o público a sinta, a vivencie e a questione. Em sua totalidade, 2 Mundos é um ato de resistência artística, que usa as sombras não apenas para contar uma história, mas para iluminar as sombras da nossa própria história coletiva, trazendo à tona reflexões sobre as continuidades e rupturas ainda presentes nos encontros entre culturas em conflito.
Assim, a montagem se configura como uma experiência profunda, um convite para que o público não apenas observe, mas viva as complexidades das trocas culturais, dos confrontos e das esperanças que surgem nos momentos mais sombrios da humanidade. 2 Mundos é um espetáculo que, ao conectar o passado com questões urgentes do presente, cria uma ponte entre ambos, desafiando a audiência a refletir sobre os legados de um processo colonial que, embora distante no tempo, continua a reverberar no mundo contemporâneo.
FICHA TÉCNICA
Direção, Cenografia e Iluminação: Alexandre Fávero
Ideia original e Argumento: Soledad Garcia
Roteiro: Alexandre Fávero, Fabiana Bigarella, Soledad Garcia e Thiago Bresani
Sombristas: Soledad Garcia e Thiago Bresani
Assistente de direção: Fabiana Bigarella
Trilha sonora: Mateus Ferrari
Designer de som: Marcelo Dal Col
Pesquisa e construção do material cênico: Soledad Garcia e Thiago Bresani
Figurinos: Soledad Garcia
Fotografia: Diego Bresani