Sobre a necessidade de continuar.

Por Diogo Spinelli
16/03/2017

Logo no início de Avante, marche! – obra belga dirigida pelos diretores Alain Platel e Frank Van Laecke em parceria com o compositor Steven Prengels, coproduzida pelos grupos NTGent e Les ballets C de la B, e que, nas apresentação da 4ª edição da MITsp, contou ainda com a participação de musicistas brasileiros – o público é informado de que, a pedido dos criadores da obra, somente algumas de suas cenas serão legendadas.

Num primeiro momento, a não-tradução de grande parte dos excertos textuais da obra – emitidos em diversos idiomas europeus, e dentre os quais figuram pequenos trechos em português – pode parecer uma opção elitista de seus criadores, já que teoricamente favoreceria uma maior compreensão da obra por parte dos espectadores que possuíssem certo conhecimento de uma ou mais línguas utilizadas em cena.  Essa indicação, porém, diz mais respeito ao fato de que em Avante, marche! a linguagem verbal funciona apenas como um dos componentes que irão estabelecer o discurso da cena, sendo menos necessária a sua compreensão total, e mais importante a sua relação de composição com os demais aspectos da cena, sobretudo com os corpos e com a música – elementos esses que, juntos, estabelecem a poética da obra, constituída entre o teatro, o concerto e a composição coreográfica.

Tendo como referência a obra O homem da flor na boca, de Pirandello, Avante, marche!  traz à cena a figura de um ex-trombonista, impedido de dedicar-se à tocar seu trombone devido à uma enfermidade que lhe impede de respirar adequadamente. Assim, resta ao ex-trombonista ficar relegado ao posto de tocar os pratos da fanfarra da qual faz parte. Contudo, essa posição não parece bastar-lhe. Ainda que estabeleça de início esse campo dramático, no qual é possível identificar a personagem do ex-trombonista e seu respectivo conflito, Avante, marche! pode ser visto a partir de então através de uma perspectiva expressionista.

Com o acompanhamento dos demais músicos e componentes da fanfarra – composta sobretudo por instrumentos de sopro como o trombone impossível de ser tocado pelo protagonista e na qual destacam-se as figuras femininas de duas balizas – as diversas emoções vivenciadas pelo ex-trombonista aparecem traduzidas cenicamente em passagens musicadas ou não e que oscilam entre o réquiem, a celebração e o saudosismo, numa trajetória de impossibilidades e insistências.  Nesta trajetória, alguns pensamentos simples, mas de grande potência sintética e metonímica são compartilhados conosco através da figura do ex-trombonista, sugerindo suas visões sobre o mundo: “Imagine como seria um mundo em que todos fossem músicos?”, ou “Não aguento mais uniformes” ou ainda este, que se repete muitas vezes durante uma mesma passagem: “Eu tenho medo, mas continuo”.

Avante, marche! é um espetáculo sobre a persistência nas adversidades, e nesse ponto, encontra grande reverberação em nossa sociedade atual como um todo, e no campo da cultura e das artes em particular.

Enquanto nos palcos do Theatro Municipal transcorria a sessão de Avante, marche!, a cerca de três quilômetros dali, milhares de pessoas protestavam na Avenida Paulista contra a Reforma da Previdência, e em última instância, contra o governo golpista que se instalou em nosso país desde meados do ano passado. A caminho do Theatro, saindo do prédio do Itaú Cultural na tarde de hoje, cruzei com essas pessoas todas em sua própria marcha enchendo as ruas da Consolação e da Avenida Paulista do seu fim até o começo. Ali também estava, na diversidade desse movimento coral, nos batuques, nos apitos e nas palavras de ordem, a energia que pulsa e que, apesar dos pesares, se desafia a continuar. Na cena de encerramento de Avante, Marche! a fanfarra, já sem o trombonista, executa sua última música sob a batuta do maestro, finalizando-a com uma nota em suspenso que não sugere acabamento, mas continuidade. Assim como na obra, não estamos no fim. E é preciso resistir, e continuar a tocar, a tocar, e a tocar.

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