De que vale um mártir em vida?

Por Paula Medeiros
17/03/2017

 

De 14 a 21 de março acontece a quarta edição da MITsp - Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. A Mostra teve início em 2014, idealizada por Antônio Araújo (diretor do Teatro da Vertigem e professor) e Guilherme Marques (diretor geral do Centro Internacional de Teatro Ecum) e desde o princípio tem um forte apelo pedagógico no que diz respeito às atividades paralelas à programação de espetáculos. São debates, atividades de crítica, performances públicas e workshops com foco na formação do olhar espectador e da eficiente troca entre artistas, grupos e coletivos de diferentes regiões do país e do mundo. Este ano as atividades da MITsp têm dois principais eixos de abordagem: a questão da negritude (racismo, empoderamento e protagonismo) e o teatro documentário (caracterizado, em resumo, pela utilização de fatos reais e documentos históricos como fonte primordial da criação).

Nesta quarta edição a Mostra conta com 10 espetáculos de diferentes nacionalidades (África do Sul, Alemanha, Bélgica, Brasil, Chile, Líbano) na programação, sendo três deles parte da Mostra especial Rabih Mroué, artista visual, ator, dramaturgo e encenador libanês, que também ministrou o workshop “Brasil em Pixels” - motivado pelas manifestações que têm aquecido as ruas do país #foratemer - entre os dias 10 e 13 de março. O artista utiliza as linguagens do teatro, da performance e do audiovisual para desconstruir imagens e criar narrativas irônicas, por vezes engraçadas, utilizando os conflitos políticos no Oriente Médio – especialmente no Líbano – como matéria prima.

Na noite de abertura da MIT, no teatro do SESC Vila Mariana, o público conferiu a primeira sessão do espetáculo “Tão Pouco Tempo”, patrocinado pelo Federal Culture Foundation, e performado pela atriz Lina Majdalaine que, além de parceira de trabalho, é também esposa de Rabih Mroué. No palco vemos uma mesa com um recipiente contendo um líquido incolor, uma plataforma no sentido horizontal para a legenda do espetáculo e uma outra plataforma no sentido vertical onde, no decorrer da trama, é projetada a imagem do recipiente como se visto de cima. De início somos avisados de que se trata de uma narrativa fictícia.

Ao entrar no palco, Lina Majdalaine vai até a mesa e dá início a narração. A fábula faz alusão a instável situação política do Líbano nas últimas décadas e que, especificamente entre os anos de 1975 a 1990, foi tomada por um estado de guerra civil. Em meio a negociações acerca de mortes, resgate de corpos, prisioneiros, uma matemática fria e irracional, chegamos a notícia do óbito de Deeb Al Asmar, heroicamente morto em combate, a quem é levantada uma estátua como homenagem. Nasce um mito, sentencia a mídia na exploração da tragédia humana. E quando estamos todos acreditados é, então, que somos surpreendidos pelo ressurgimento de Deeb Al Asmar, em vida, anos depois. Lembro de Cristo ressuscitado. Mas não. Deeb Al Asmar está realmente vivo e se emociona ao reencontrar a si mesmo transformado em mártir, fica comovido com a própria falsa história, “fizeram-me uma lenda apesar de mim”.

Enquanto narra, Lina coloca fotografias pessoais no recipiente com o líquido que, em questão de minutos, borra as imagens até que só restem papéis em branco, submersos. Vemos memórias sendo apagadas. Como, no decorrer dos sessenta minutos de espetáculo, vai sendo construída, manchada e desacreditada a glória de Deeb Al Asmar, o mártir que, em vida, certamente pouco vale. O espetáculo aponta a necessidade que temos de erguer monumentos, ídolos, líderes, de levantar bandeiras ideológicas, muitas vezes maiores que a realidade, que a própria vida e, nesse sentido, reflete a crise de identidade libanesa no que diz respeito à construção do Estado, dividido entre ideologias religiosas e políticas num exercício de alteridade que massacra a sua história e põe longe o sentido de independência. “Todos nós somos projetos de mártires” e “chegará o dia em que ergueremos nossas próprias estátuas” ainda que saibamos: é tudo ficção. Do outro. E de nós sobre nós mesmos.

Ficha Técnica

Dramaturgia e direção: Rabih Mroué
Performer: Lina Majdalanie
Colaboração no Texto: Yousef Bazzie Lina Majdalanie
Cenógrafo: Samar Maakaroun
Artes Gráficas e Assistente de Direção: Abraham Zeitoun
Assistente de Pesquisa: Andrea Geissler
Tradução/Inglês: Ziad Nawfal e Joumana Seikaly
Tradução/Alemão: Karen Witthuhn
Tradução/Francês: Nada Ghosn
Tradução do Texto: Patrícia Lopes
Legendas: Yvonne Griesel
Música: Kari’atal-funjan – Abdel Halim Hafez (composta por Mouhamad Al Mouji, Letras de NizarQabbani)
Produção local de montagem: Ricardo Frayha
Equipe técnica local: Julio Cesarini, Rodrigo Campos, Rodolfo Jaquetto, Mariana Mastrocola, Fernando Zimollo
Uma produção de Rabih Mroué em coprodução com HAU Hebbel on the banks, Wiesbaden Biennale, Festival d’automne à Paris e Theater de la Bastille. Patrocinado pelo Federal Cultural Foundation.

Clique aqui para enviar seu comentário