"Não estou aqui para ser negra"

Por Paula Medeiros
23/03/2017

 

A primeira vez que ouvi sobre “Feminismo Negro” foi no ano passado enquanto conversava com uma amiga e, de imediato, o termo me pareceu contraditório no que diz respeito à sororidade. “Mas a ideia primordial do feminismo é a união entre mulheres, por que distanciar brancas de negras? Somos mulheres, enfrentamos os mesmos abusos perante a sociedade machista em que nascemos, crescemos e temos vivido...” e então ela explicou que eu estava equivocada. Que existe sim um elo que nos une por sermos mulheres, mas que numa sociedade além de machista, historicamente racista, só pelo fato de eu ser uma mulher branca já havia nascido com uma porção de privilégios e nem me dava conta disso. Que se me incomodava tanto o lugar em que somos colocadas, o que dirá das “mulatas”, das “neguinhas”, das “morenas”, brutalmente sexualizadas e marginalizadas?! E num rápido exercício de reflexão, compreendi que estava mesmo equivocada. Tremendamente equivocada, aliás. Por mais que eu deseje lutar para desconstruir estes padrões, jamais saberei o que é ser uma mulher negra, jamais poderei falar por elas. Não é este o meu lugar de protagonismo, mas, certamente, é um bom lugar de escuta, de observação e de permanecer tentando exercitar a empatia e o respeito pelx experiência dx outrx.

Na noite de 18 de março, no teatro do Itau Cultural, me coloquei neste lugar durante o espetáculo “Black Off” de Ntando Cele, artista de naturalidade sul-africana que, atualmente, reside na Suíça. O espetáculo caminha entre as linguagens do stand up, do concerto e da performance durante, aproximadamente, 120 minutos, tempo suficiente para sermos apresentadxs a muitas facetas da artista.

Em cena, junto da performer, três músicos suíços compõem uma banda que, no primeiro instante, cria uma paisagem sonora suave, lembrando um familiar jazz de programa de auditório. Cele entra em cena como Bianca White, uma espécie de alter ego, vestida com um quimono branco, usando uma peruca de cabelos loiros, lisos, e com o rosto coberto por uma “white face”. Com um humor ácido, gestos delicados e dotada de uma falsa passividade, Bianca conta de suas andanças pelo mundo como comediante e de sua missão de caridade, ajudar pessoas negras.

Sem grandes esforços, a personagem arranca gargalhadas da plateia composta por, pelo menos, 90% de pessoas brancas. Concluo isso ao me distanciar por alguns instantes da performance e fazer uma rápida verificação do público, sentindo um certo desconforto com algumas risadas cheias de euforia diante de piadas racistas. Mas não há espaço para julgamentos, Bianca White é mesmo cativante em sua acidez e também me rendo a umas boas risadas, como quando ela alfineta a “nós, pessoas brancas complicadas, com nossa arte complicada” ou quando ela menciona ser um enorme prazer estar aqui, “Rio, Argentina”.

Um dos momentos mais impactantes do trabalho é quando a comediante convida uma pessoa negra da plateia a subir ao palco para participar de uma “meditação branca” que vai ajudá-la a vencer a “escuridão interior” e, em seguida, oferece um prosecco aos negros presentes (um espectador branco chega a pedir uma taça, mas não é atendido) e, acreditem, um dúzia de taças é o suficiente para servir a todos. Um brinde a dívida histórica que grande parte da população insiste em não assumir! Que "tapa na cara", Ntando Cele!

Ao final deste primeiro ato, a performer senta em uma cadeira diante de uma penteadeira. Há uma câmera filmando o seu rosto e um recipiente com água sobre o móvel. O repertório da banda passa do blues ao punk, enquanto Cele se despe de Bianca White, removendo com agilidade a máscara branca. Esta imagem é projetada e sobreposta com um vídeo do rosto da artista coberto por uma máscara de farinha de milho e vermelho, invocando sua ancestralidade. Certamente uma das imagens mais poéticas do espetáculo. Já desfeita de Bianca, Ntando sai do palco e temos um rápido intervalo antes do próximo ato.        

A segunda parte do trabalho é dividida em dois momentos-chave. O primeiro, em que a performer manipula sua autoimagem moldando máscaras utilizando apenas as mãos e o próprio rosto, e satiriza o polêmico tema da apropriação cultural em grifes e marcas da moda como parte de um plano meramente mercadológico. O segundo, em que a banda executa um concerto punk e Cele surge em cena como uma estrela do rap e, num papo reto, alveja num microfone o real discurso de sua obra em rimas, berros e provocações: que pesado é carregar, enquanto artista, o gênero e a raça como uma associação do que é "exótico".

“Eu estou aqui, eu sou negra, mas não estou aqui para ser negra”. Há de chegar o dia em que não será necessário bradar o óbvio, Ntando Cele... e enquanto isso, grite! Grite! Grite! 

      

 Ficha Técnica

Diretor: Ntando Cele
Autor: Ntando Cele/ Raphael Urweider
Produtor: Manaka Empowerment Productions
Performance e Vídeos: Ntando Cele
Composição/Música: Simon Ho
Música: Patrick Abt, Pit Hertig
Texto/Codireção: Raphael Urweider
Iluminação: TonioFinkam
Técnica: Maria Liechti
Tradução do Texto: Hugo Casarini
Produtor Executivo/Diretor de Palco: Michael Röhrenbach
Uma coprodução com o PRAIRIE, modelo de coprodução do Migros Culture Percentage para companhias de teatro e dança inovadoras da Suíça.

 

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