Uma memória em constante estado de reconstrução.

Por Diogo Spinelli
22/03/2017

Cavalgando Nuvens, terceira das obras dirigidas pelo artista libanês Rabih Mroué apresentadas na programação da 4ª edição da MITsp, ao mesmo tempo que retoma temas e elementos constitutivos da poética do encenador, explora nuances distintas com relação às demais obras. Como não tive a oportunidade de conferir Revolução em Pixels, e consegui assistir à Tão pouco tempo (lembrando que as críticas escritas por Paulinha Medeiros para ambos os espetáculos estão disponíveis em nosso portal), nessa crítica traçarei algumas ligações entre esse último e Cavalgando Nuvens.

Assim como em Tão pouco tempo, Cavalgando Nuvens afirma aos espectadores em seu início tratar-se de uma obra que se utiliza de elementos da ficção. Esse dado, porém, nos é fornecido de forma menos informativa do que em Tão pouco tempo, e de maneira mais poética, nos primeiros textos nos quais ouvimos a voz de Yasser Mroué, irmão do encenador, e que nessa obra cumpre a dupla função de performer e de personagem de sua própria história. Ainda que o que se passe no decorrer da próxima hora seja uma ficção – ou uma reelaboração ou reconstrução da realidade – a presença de Yasser é real, e tão real quanto ela é a cicatriz que ele ostenta no lado esquerdo de seu crânio, perfurado por uma bala disparada por um franco-atirador enquanto caminhava pelas ruas de Beirute, capital libanesa, quando tinha 17 anos.  

Após tal fato, Yasser – e a partir de então não é possível mais distinguir entre o que é real e o que é fictício – adquire como efeito colateral da lesão uma afasia. A afasia, que se caracteriza como uma alteração da função da linguagem no processamento cerebral, faz com que Yasser passe a ter dificuldades não exatamente com o ato de expressar-se através de palavras, mas, principalmente, com a abstração contida nas representações. Somado a isso, as imagens passam a ser processadas por Yasser não de modo contínuo, mas frame a frame, sem necessariamente serem ligadas por alguma espécie de nexo causal.   A partir de então, Yasser começa a gravar vídeos e áudios, como forma de reprocessar sua memória.

São esses arquivos – tanto os vídeos criados, quanto os áudios gravados – que conformam sua nova memória, armazenados numa espécie de nuvem virtual, que Yasser nos fará ter acesso em praticamente sua ação única de operação de som e vídeo no decorrer da encenação. Assim como seu novo jeito de processar a linguagem, o percurso criado por esses arquivos virá até nós de forma elipsoidal, aos saltos, à galope: Cavalgando Nuvens.

Do mesmo modo como ocorre em Tão pouco tempo, na qual acompanhamos a trajetória do fictício Deeb Al Asmar em precisar revisitar sua própria memória e reconstruir sua própria identidade ao ter sido alçado ao posto de mártir estando vivo, em Cavalgando Nuvens acompanhamos Yasser em seu não reconhecimento de si mesmo em suas antigas representações, e seu esforço de reconstituição de sua antiga memória esfarrapada. De certa forma, estamos novamente diante da mesma questão, e em ambos os casos, tanto Deeb Al Asmar quanto Yasser Mroué são eles mesmos representações do Líbano, e seus traumas pessoais e sua eterna reconstrução de identidade são também os traumas e os processos identitários libaneses reprocessados no pós-guerra.

Ainda que a questão seja semelhante, a utilização dos recursos narrativos e teatrais na abordagem das duas obras são distintos. Partindo da dificuldade de Yasser em estabelecer conexões entre o real e o abstrato das representações, Rabih estabelece subterraneamente em Cavalgando Nuvens seu tratado sobre a representação – ou sua ausência – no teatro, e na vida. Não à toa, compõe parte da dramaturgia uma alusão à Hamlet, na qual Shakespeare expõe suas ideias sobre o assunto.  Se em Tão pouco tempo ainda subsiste algum grau de teatralidade, uma vez que a atriz Lina Majdalaine nos conta a história de Deeb Al Asmar, e chega até mesmo a representá-lo, em Cavalgando Nuvens estamos tão somente diante da presença real de Yasser Mroué, e isso,segundo a poética de Mroué, basta.

Nesse tratado sobre a representação, onde não há mais espaço para a teatralidade, os contextos pessoais, sociais e políticos agregam-se na figura real de Yasser em cena. Nem que para isso, a narrativa de sua memória/história precise ser mais uma vez ficcionalmente reconstituída. 

Mas nesse teatro sem teatralidade (ausente também dos demais elementos da cena), e o teatro, onde fica?

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