Por Heloísa Sousa
21/03/2017
Corpo. É nu. Café. Farinha. Olho no olho. Silêncio. Pausa. Coletividade. Em movimento. Fluxo e pulsação. A gente sempre dá um jeito. Pra tudo tem um modo. Jovem. Velho. Vida. Nasce e morre, tudo. Sem identidade. Corpo de novo. Murmúrios, grunhidos, choros e lamentações. Compaixão. Do pó nascemos e ao pó retornaremos. Ou pra terra. Algo assim. Dança. Pé no chão. Ritmo. Pulsação de novo. Somos bichos. Junta, separa. Vai até a exaustão. Insiste. Para. Cúrcuma. Luz.
Durante esta quarta edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, nos dispusemos a escrever sobre os espetáculos assistidos como uma forma de aproximar Natal das discussões e compartilhamentos estéticos deste evento. A vontade de escrever e a organização desse material para divulgação no site mobilizaram os nossos momentos pós-espetáculos. No entanto, depois de assistir “Para que o céu não caia” da Lia Rodrigues Companhia de Danças (RJ), o meu desejo era de tornar aquilo visível aos olhos de Natal, pois as palavras não seriam honestas com a experiência que vivi. Mas, a gente segue tentando.
Lia Rodrigues é uma das coreógrafas brasileiras mais significativas da nossa contemporaneidade não só pelas suas experimentações estéticas, mas também por suas posturas políticas. Nascida em São Paulo, a artista desenvolve seu trabalho no Rio de Janeiro, especificamente no Complexo da Maré, bairro carioca sujeito ao tráfico de drogas e mais um dos espaços brasileiros marcados pela desigualdade e marginalização social. É neste lugar, neste barulho, neste fluxo e neste calor que Lia Rodrigues cria em colaboração com outros artistas e alunos do Centro de Artes da Maré onde coordena atividades artísticas-pedagógicas. Ao ouvi-la durante uma ação formativa intitulada “Pensamentos em Processo” da MITsp, mediada pela Prof. Dra. Christine Greiner (PUC-SP), não pude deixar de lembrar das adversidades de existência e trabalho dos artistas no bairro da Ribeira em Natal. Salvo as devidas proporções.
É neste contexto que Lia Rodrigues e os intérpretes criadores desenvolvem um trabalho em dança contemporânea extremamente simples ao mesmo tempo em que se revela tão complexo. No primeiro parágrafo deste texto, tentei através de palavras solitárias, elencar as imagens e ações construídas no espetáculo, na ordem em que a minha memória registrou. Escolhi esta estratégia porque a obra não apresenta uma narrativa apreensível, mas sim um momento intenso de encontro entre público e artistas. A presença e suas potencialidades formam o discurso do espetáculo. Estamos vivos. O que fazemos com isso?
Esta obra é inspirada nos relatos do xamã yanomami Davi Kopenawa que fala sobre o “desabamento” do céu sobre nossas cabeças, como consequência de toda a desumanidade com a qual estamos levando o mundo. Junto a isso, os bailarinos saem pelas ruas fazendo um Questionário Afetivo-Cultural-Corporal na Maré que os permitem criar exercícios coreográficos a partir desses encontros e que também se transformaram neste espetáculo através da direção sensível de Lia Rodrigues.
Nossa ancestralidade é evocada, junto com a força dos movimentos e sonoridades capazes de serem produzidos pelos nossos corpos. Os bailarinos em cena constroem uma linguagem universal através dessa dança que se comunica pela pupila dilatada que me encara, pelo suor dos corpos que se exaurem, pelo cheiro dos pós que cobrem as peles, pelo encontro com uma “pequena multidão” no teatro do SESC Belenzinho. Um mundo em uma sala.
Em “Para que o céu não caia” há poucas artificialidades. Não há uma música que direcione a dança ou poetize as cenas, mas também não há silêncio. Os corpos são matérias de percussão, no sentido dos sons que se obtém pelos impactos, pelos encontros, pelo desejo de mover. A criação da luz assinada por Nicolas Boudier é uma obra à parte, que instaura uma atmosfera sublime e profana simultaneamente em um jogo entre sombra e luz que reage com os cor(pós) em cena. A nudez aparece como estratégia de afirmação de nossa materialidade, em uma tentativa de nos fazer lembrar o que somos ou como podemos ser.
Diante desse (pouco) tudo, minimalista, talvez o que mais tenha me impressionado seja a evocação da vivacidade do coletivo durante o espetáculo. Lia Rodrigues constrói uma relação/interação entre artista e público que nos integra a obra de tal forma, que nos tornamos também o espaço-tempo de dança desses bailarinos. Não estamos apenas assistindo, nós somos tudo aquilo também, juntos. E então, surge uma topografia do público. Os modos como os corpos se locomovem, se acomodam e interagem a partir da observação, do encontro e do estímulo dos artistas é sur-real. Nossa capacidade de organização é rizomática, adaptável e variável as nossas singularidades; é também intuitiva, sensível às transformações do momento presente. Mas, parece que em nosso cotidiano bombardeado das ditaduras dos sistemas acabamos por nos esquecer disso tudo; e então, é preciso que paremos e dancemos, ou então, como dizia Pina Bausch, estaremos perdidos. E isso não é uma metáfora.