Por Heloísa Sousa
26/03/2017
Este espetáculo não é fácil. A complexidade do texto e suas camadas de sobreposição, a composição das imagens com um excesso de elementos dispostos em cena que parecem não ser úteis nem relacionais, a precariedade das atuações sem grandes movimentos ou virtuosismos na busca de evidenciar personagens estranhos com aparências “socialmente disformes”; e para somar a tudo isso, a polêmica de um branco falando sobre o racismo. Devo adiantar que o meu texto é referente a uma percepção “falhada” desta encenação. Enquanto espectadora, eu sinto que precisaria assistir a este espetáculo mais duas vezes – eu acho – e ler a dramaturgia escrita – se possível – para ter uma percepção mais “completa” da obra. Nunca usei tantas aspas em um parágrafo, mas é que em Branco: o cheiro do lírio e do formol, nada é certeza, muita coisa está suspensa e as percepções incomodam.
Vou começar pelo fim, pois a vida escreveu um epílogo desta encenação que eu ainda não fui capaz de compreender, mas ainda assim, sinto que é necessário compartilhar. Quando o espetáculo terminou, eu e meu parceiro seguimos para fora do Centro Cultural de São Paulo (CCSP) a fim de solicitar um über e retornar ao apartamento onde estávamos hospedados. Saímos incomodados, obviamente, meio confusos e sem saber ao certo qual impressão tínhamos daquela obra – e eu, mais ainda, porque teria que escrever sobre – também era visível o incômodo da plateia – em sua maioria, branca – com o espetáculo e no caminho até a rua íamos escutando fragmentos de discussões entre as pessoas sobre este momento. A afirmação de que estávamos diante de um espetáculo racista rondava a Mostra e nós estávamos tentando produzir um pensamento sobre isso.
O carro chegou. Abrimos a porta e entramos. O motorista era um homem negro e angolano. O tempo para.
O motorista (não lembramos o nome dele) nos perguntou o que estava acontecendo ali no CCSP. Felipe (meu parceiro) informou que era a 4a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. O motorista perguntou o que estava sendo apresentado durante essa mostra e o que nós tínhamos assistido naquela noite. Felipe falou que iria ter um espetáculo nas noites seguintes intitulado Black Off de autoria de uma artista sul-africana e que trazia discussões sobre o feminismo negro. O motorista se mostrou bastante interessado e pediu licença para me questionar um pouco sobre o feminismo. Debatemos sobre o assunto. Ele me perguntava coisas e eu respondia. Ele foi muito educado durante seus questionamentos e me escutava com bastante atenção. Felipe permaneceu calado durante todo este momento. Chegamos. Ele pediu desculpas caso tivesse me importunado com aquela conversa. Eu nunca tinha sido tão bem ouvida por um homem, ao tratar sobre o feminismo... na maioria das vezes, os homens “feministas” acham que já sabem sobre isso bem mais do que eu...
Alexandre Dal Farra é autor e encenador de Branco: o cheiro do lírio e do formol, onde divide esta última função com a atriz Janaína Leite. Os dois já estiveram em Natal/RN com o espetáculo Conversas com meu pai no Festival o Mundo Inteiro é um Palco em 2016 e nesse momento pudemos conhecer suas pesquisas em interesses no teatro documentário e na utilização de materiais e situações do cotidiano para a construção de cenas. O trabalho estreado nessa Mostra não é diferente e traz para o teatro uma discussão sobre o racismo conduzida por pessoas brancas. Este é o maior desafio e ao mesmo tempo a maior causa do estranhamento do público sobre a dramaturgia escrita por Dal Farra, pois Branco trata do racismo na perspectiva do opressor.
Em uma abordagem ética não deveríamos dizer que “todos somos racistas”, pois as atitudes não resumem os sujeitos ou os determinam, mas os conduzem para as realidades que vivemos e suas respectivas consequências. Dessa forma, se questionarmos “quem se considera racista?” estaremos causando um grande embaraço, ao mesmo tempo em que entramos em uma situação que não promove a discussão ou a transformação. Mas, se perguntamos “quantos de nós, já tivemos atitudes ou pensamentos racistas?” as respostas poderão surgir com mais sinceridade e poderemos debater sobre. Afinal, todos nós já tivemos atitudes ou pensamentos racistas, pois infelizmente, fomos educados para isto. E podemos estender esta percepção ao machismo, a homofobia e outras formas de discriminação. Percebo que Branco parte desta premissa, fala do que não queremos discutir [afinal, segundo o instagram/facebook, somos todos excelentes ativistas e transformadores da sociedade], assume e evidencia nossos erros para nos fazer pensar sobre esta questão. Mas, talvez a gente pense demais e faça de menos. Eu até entendo toda a indignação.
A ausência de pessoas negras na encenação reflete a ausência das mesmas no público. A realidade da discriminação e da marginalização está posta e talvez haja muito esforço para nos isentarmos da responsabilidade sobre este quadro. Outra questão seria repensar as críticas aos espetáculos que exigem que estes ultrapassassem a esfera da expressão artísticas para se tornar a própria ação de mudança da realidade. A arte que salva o mundo, só que não. Parece que as pessoas se incomodam mais com algumas ações artísticas do que com a sua própria existência.