Por Heloísa Sousa
30/04/2017
O Entre Nós Coletivo de Criação abriu a programação da décima edição do Encontro de Dança em Natal/RN com o espetáculo “Bailongo”, dirigido por Diana Fontes (produtora e idealizadora do evento) e com coreografia do colombiano Vladimir Rodríguez.
Apesar do coletivo estar ativo na cidade desde 2009, esta foi a primeira vez que pude apreciar um de seus espetáculos, ressaltando que já conhecia o trabalho individual de alguns de seus bailarinos como Andreia Melo e Francisco Júnior. É perceptível a qualidade técnica do elenco e sua relação matricial com alguns princípios da dança contemporânea, permitindo-se ainda algumas interações cênicas com outras linguagens como o teatro.
Em cena, temos um hexágono, figura geométrica de seis lados que estabelece o espaço cênico da obra e dispõe seis bailarinos com seis cadeiras em seus vértices. Esses corpos dançam, interagem em relações erráticas, em alguns momentos estabelecem conflitos e em outros parecem ser engrenagens de uma grande máquina humana em funcionamento. As mulheres, em alguns momentos, discorrem sobre sensações descontextualizadas que perpassam desejos da vida e a experiência da própria dança. As cadeiras se relacionam com os corpos como pontos de apoio, aparentam ser espaços de conforto e de segurança, onde as relações podem ser suspendidas; no entanto, no decorrer da obra, transformam-se em espaços de tensão, quando vários corpos se apoiam sobre ela e torna o espectador inseguro sobre a capacidade que aquele objeto tem de suportar essas mesmas relações. Mas, além disso, as cadeiras interagem com os corpos também para produzir sonoridades e ritmos, o que me faz questionar a utilização da trilha sonora tocada externamente em alguns momentos, que parecia não dialogar com os sons produzidos pelos próprios intérpretes.
“Bailongo” é inspirado no livro “Que viva la música!” do escritor colombiano Andrés Caicedo, que durante a década de 1970, escreve uma história sobre a jovem María del Carmén Huerta que abandona o conforto de uma vida dentro de uma família de classe alta para se aventurar por um mundo intensificado pela dança, pela música e pelas drogas. Não conhecia o trabalho deste autor, nem sabia da sua importância para a literatura contemporânea latino-americana. Percebi que pesquisando um pouco sobre suas obras, consegui compreender algumas escolhas cênicas e abordagens do espetáculo. Isso é interessante no exercício da crítica. Depois de iniciar meu trabalho e estudos sobre a crítica em artes cênicas, passei a concretizar mais a minha necessidade de se relacionar com uma obra cênica para além da apresentação. Passei a investigar mais sobre o processo, os artistas e suas referências na busca de expandir o diálogo com a obra que se inicia com a experiência cênica [dentro do espaço cultural de apresentação], mas que não se encerra aí. Este é também um dos objetivos de nossa plataforma virtual: estimular nossos leitores a fazerem o mesmo, semanalmente ou de modo mais intenso quando temos a oportunidade de cobrir alguns festivais, mostras e/ou encontros.
A percepção de uma obra artística não surge neste momento de pesquisa, mas se intensifica com ela. A escolha da obra literária de Caicedo como referência dramatúrgica parece ter relação com o próprio contexto do coreógrafo Vladimir Rodriguez, nascido no mesmo país de origem do escritor. Essa literatura contemporânea e o espetáculo evidenciam uma busca pelo prazer e pela sensação de felicidade dos encontros e acasos, que na existência humana, parece só fazer sentido na presença do desespero, da dúvida e das tensões produzidas pelos mesmos encontros e acasos. É nesse paradoxo que se instaura a vida e nossas descobertas, independente da nossa busca por sentidos em razões transcendentais, filosóficas ou alucinógenas.
Talvez, se você tiver lendo esse texto e visto o espetáculo, esteja se questionando se viu o mesmo que eu. Mas é que uma obra artística é mais disparadora de pensamentos do que conclusiva no instante em que você aplaude o que viu.
No entanto, preciso concluir este texto apontando algumas problemáticas que podem ser [e estão sendo] repensadas pelos artistas da cena: Como lidamos com a recorrência em estabelecer relações entre corpos femininos e masculinos a partir de uma ótica romântica e heteronormativa, que aparecem como padrões representativos e antagônicos diante da realidade da violência dos relacionamentos [em nossa incapacidade de associar amor à liberdade] e da pluralidade [infinita?] das sexualidades? Como compreendemos uma dança contemporânea que não se resume a superação da verticalidade imposta aos corpos no balé clássico, nem da ilustração de questões existencialistas a partir de coreografias que evidenciam a qualidade técnica? Em tempos de tecnologias, promiscuidades [mistura] e interações existem outras questões e abordagens para além dos romantismos das relações que podem aparecer em uma dramaturgia corporal que considere a expressividade do corpo-que-tem-voz [tornando necessária a apreensão de uma técnica vocal] e a presença das materialidades do mundo que reverberam na cena.
A trajetória dos corpos que dançam no Entre Nós Coletivo de Criação é visível nas movimentações e deslocamentos dos mesmos, carregando também aspectos da própria história e prática da dança contemporânea em Natal protagonizada por grupos como CDTAM, Gira Dança, Gaya Dança Contemporânea, entre outros. Eu, que venho me alucinando pela instabilidade, pelo incompreendido e pelo desvio, fico ansiosa por encontros entre gerações diferentes da dança natalense e entre abordagens estéticas conflitantes que possam suscitar experiências cênicas que busquem romper com os nossos referenciais e nos fazer enxergar a carne.
Direção Cênica: Diana Fontes
Coreografia: Vladimir Rodríguez
Trilha Sonora: Danilo Guanais
Figurino e Cenografia: Vladimir Rodríguez e Elena Ciavarella
Iluminação: Rocha Iluminações
Sonorização: De Oliveira Produções Musicais
Chefe de Palco: Gilca Leonardo
Elenco: Andreia Melo, Ana Carolina Vieira, João Alexandre Lima, Francisco Júnior, Meyrielle Gonçalves e Tházio Menezes.