Nosso ou dos outros?

Por George Holanda
01/05/2017

 

O grupo mossoroense Gesto Cia. de Dança se propõe a discutir a difícil relação entre o que é meu, o que é seu e o que partilhamos todos, em seu trabalho Meu, seu, nosso, com direção geral de Hykaroo Mendonça. Num palco com apenas dois suportes para pendurar alguns figurinos, os dançarinos entram com roupas íntimas e a cada coreografia vestem algumas das peças que lá estão. A utilização desses suportes como apoio, bem como a presença dos dançarinos próximos a esses nos momentos em que não estão dançando, constroem uma ideia de separação entre o ambiente em que a dança (em si) acontece, ao centro do palco, e o ambiente fora da cena. A existência desses dois ambientes faz supor a área da dança como o campo em que se discorre sobre o tema do espetáculo e os dançarinos, com uma invariável seriedade, como provocadores ou comprovadores das idéias da montagem. 

No início do trabalho se fala um texto que parece expor o tema, estabelecendo os parâmetros da discussão proposta e reforçando um certo tom de espetáculo-tratado. O dito texto aponta para a questão do estar só e de como o outro nos afeta. Tal recurso volta a ser utilizado mais para o final do espetáculo, mas a maior parte desse é composto por várias coreografias de duplas e trios, nos quais o ritmo intenso coloca à prova o vigor e a força dos dançarinos. As coreografias são pautadas por um rigor nos movimentos e estabelecem relações que nos fazem pensar que o que cabe na esfera do comum é um clima de competição entre as pessoas, uma luta por se sobrepor ao outro. O mundo construído com aquela dança remete a uma disputa por sobrevivência por corpos fortes e jovens. Há a ideia de que o espaço coletivo implica na perda do espaço individual pelo outro de forma violenta.

Os momentos em que o grupo em sua maioria se encontra em cena são aqueles nos quais presenciamos imagens-síntese das questões propostas, como quando todos lentamente envolvem uma dançarina que está parada ao centro do palco, ainda no início do espetáculo. Ocorre que os vários números que preenchem a maior parte do trabalho reforçam a mesma idéia de dureza das relações, seja entre homens, seja entre mulheres, sejam entre ambos os sexos. Não há muito alívio no universo construído, à exceção do momento em que num tom mais sexual se dança uma musica de Maria Bethânia ou no momento final do espetáculo. E estas duas cenas são inseridas na dramaturgia de forma inesperada, se não brusca.

Nesta falta de respiro no decorrer do trabalho se percebe uma certa redundância nas coreografias que se seguem após seu início, considerando que se pautam pela mesma tonalidade, com pequenas variações. A surpresa cabe à inserção da coreografia ao som de Maria Bethânia com projeções, que sem aviso muda radicalmente a direção do espetáculo, seja pelo ritmo mais lento, seja pela nova ambiência. 

Se a intenção poderia ser criar um panorama das possibilidades de relações entre as pessoas, aquele não se forma pela diversidade que deixa de construir, restando por destoar as duas cenas comentadas do conjunto final. Curiosamente e para além da diferenciação que representam, são estes dois momentos que nos permitem perceber um outro viés do trabalho, com uma movimentação que aponta para uma maior liberdade no tema e nos corpos.

Na cena final, em que os dançarinos entram com um figurino que até então não havia sido mostrado (longas saias de duas camadas), há a implosão da divisão dos ambientes da cena e de fora da cena. É neste momento que presenciamos os dançarinos sorrirem e gritarem pela primeira vez. Se ainda há um rigor, há também um prazer pela liberdade que não havia transparecido, numa expressão de algo mais interno do que as coreografias anteriores. E se o encontro com o outro apenas tinha gerado um jogo por superação, é nesta cena final que se abre a porta para outra forma de relação. É quando se assume todo o espaço cênico como espaço de ficção que uma insuspeita verdade pode germinar.

 

Direção Geral: Hykaroo Mendonça

Roteiro: Adriana Castro e Hykaroo Mendonça

Textos: Leonardo Wagner

Iluminação: Júnior Félix

Sonoplastia: Daniel Vitor

Assistente: Willamy Carlos

Figurinos: Adriana Castro e Cia

Cenário: Hykaroo Mendonça e Cia

Vídeos: Debora Carioca e Leonardo Saldanha

Coreografias: Marcelo Pereira, Leonardo Saldanha, Willamy Carlos, Hykaroo Mendonça, Ivaldo Mendonça e Cia.

Elenco: Adriana Castro, Alyson Albuquerque, Ana Clara Cabral, Carol Nogueira, Douglas Rafaell, Hykaroo Mendonça, Joyce Lorena, Karla Nayanne, Leonardo Saldanha, Pablo Ramon, Rosy Fernandes e Tâmisa Vieira

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