Por George Holanda
02/05/2017
Eu, fêmea é um trabalho solo que nos remete a questões pessoais da sua criadora, Rozeane Oliveira. Ela, a quem cabe a concepção e coreografia do espetáculo, parece exorcizar no palco um pouco da violência que sofreu na vida. Os gestos não ignoram sua condição de mulher nem de negra, como indica seu toque pelo corpo e cabelo. Num ato de afirmação, quase num manifesto pessoal, ela regurgita o que teve que engolir e calar.
No início do trabalho, a dançarina aparece no escuro, fora do foco da luz. Na medida que surge na luz, vemos que executa movimentos curtos, como de alguém que é censurado na sua expressão corporal, e repetidos, como alguém que é condicionado dessa forma. Os movimentos possuem um angustiante fluxo interrompido. Ocasionalmente, Rozeane leva uma mão à garganta e desce a mesma pelo esôfago até o estômago, como que engolindo uma censura, um calar. Ela levanta a mão para falar, mas não fala. Esse corpo já não flui, existe na medida do que não existe.
A luz, que permanece durante quase o todo o trabalho focando Rozeane de baixo para cima, torna-a grande, criando uma sombra gigantesca ao fundo do palco. Se o espetáculo mostra a censura e a violência sofrida, também defende sua intérprete, empoderando-a por meio dos seus movimentos, pela luz e pelo olhar desafiador.
No decorrer do trabalho, o que é engolir passa a ser expelir. Num processo lento e difícil, o seu mencionado gesto de engolir se transforma em regurgitar. E se o trabalho se alonga neste processo que mostra tamanho sofrimento, deixa pairar a possibilidade de um certo masoquismo, ainda que tal questão não seja levada adiante.
Ao final, de forma abrupta e sem nos preparar, a dançarina cessa a movimentação e pega um lenço que se encontrava ao fundo do palco. Se o vestir o lenço representa uma maior aceitação si, pela liberdade e matéria desta nova vestimenta, tal transição se apresenta menos natural, na medida em que não se dá pela própria movimentação, mas por uma gesto de quebra. Esse resgate de si de um lugar de sombras com a troca de figurino se apresenta de uma forma que não se coaduna com o sofrimento visto naquele corpo até então.
Acaba que a tentativa de redenção simbolizada pela mudança de figurino não acontece com a mesma força com que se relembra pelo corpo o sofrimento vivido. O caminho de encontro com a própria história de dor já é um grande feito, mas a superação dessa pode ser o trabalho maior que um espetáculo.
Ficha Técnica
Concepção e Coreografia: Rozeane Oliveira
Colaboradores: René Loui, Álvaro Dantas, Daniel Silva e Thiago Medeiros
Foto: Carlos Roger Tavares
Trilha Sonora: Estúdio Megafone
Iluminação: David Costa
Produção Executiva: René Loui
Assistente de Produção: Arthur Moura
Realização: CIDA - Coletivo Independente Dependente de Artistas