Preparar-se para a luta já é, de certa forma, lutar.

Por Diogo Spinelli
02/05/2017

 

Antes de tudo, um mea-culpa: devo confessar que tenho grandes dificuldades enquanto leitor de dança.  Por mais que essa seja uma linguagem cênica irmanada da arte teatral, e que desde sempre tenha existido uma gama de manifestações artísticas que se encontram num terreno intermediário ou indistinto entre ambas, ainda sou reticente quanto ao fato de escrever a respeito de espetáculos que se localizam para lá da fronteira da dança – lugar esse no qual os discursos se apresentam e se organizam, simbólica ou materialmente, mais nos movimentos e na relação dos corpos do que em qualquer outro campo. De fato, escrever textos críticos sobre teatro ainda se constitui como uma atividade recente em minha trajetória artística/intelectual, sendo a crítica da dança inédita para mim até esse primeiro texto que segue abaixo.

Mais delicado ainda talvez seja o fato de eu, crítico do gênero masculino, começar minha trajetória tomando como objeto de crítica o espetáculo (Eu) Fêmea, criado e interpretado por Rozeane Oliveira, e apresentado durante a 10ª Edição do Encontro de Dança. Toda vez que me deparo com uma obra que possui claramente uma discussão sobre gênero, e notadamente, sobre o gênero feminino, me pergunto sobre quais possíveis questões presentes na obra relativas às mulheres invariavelmente me escapam pelo simples fato de eu me identificar e ser identificado socialmente como pertencente ao gênero masculino.  Ainda assim, resolvi me lançar ao duplo desafio de tentar discorrer sobre a obra – com todas as possíveis faltas que eu possa vir a ter, tanto como leitor de dança, quanto como espectador masculino.

Antes ainda de propriamente começar, é importante assinalar que (Eu) Fêmea é uma das obras que demarcam o surgimento do CIDA – Coletivo Independente Dependente de Artistas, coletivo sediado em Natal e inaugurado em novembro de 2016 e que possui a proposta de abarcar artistas independentes em uma estrutura horizontalizada. Além de (Eu) Fêmea, marcam a estreia do CIDA outros dois espetáculos de dança: História | Container e Etéreo.

(Eu) Fêmea possui uma forte influência autobiográfica, fator que é revelado ao público desde seu título.  Como sinalizado na sinopse da obra, esta se estabelece partindo das relações da intérprete-criadora em sua investigação do que é ser mulher. Dessa forma, o espetáculo vincula-se a várias produções recentes das artes cênicas potiguares – conforme já sinalizado em críticas publicadas anteriormente – que possuem nas questões relativas ao feminino seu eixo central.

A obra ancora-se sobretudo na potência cênica de Rozeane. Sozinha em cena, a intérprete materializa através de gestos que perfazem trajetórias de retração e expansão, num constante ato de regurgitação entre o mundo interior e o exterior ao seu corpo, certa espécie de ritual de exorcismo. Contribui para a síntese dessa oposição entre interior e exterior o duplo agigantado da intérprete, resultante de sua sombra projetada ao fundo do palco gerada por um único refletor que se constitui na principal fonte de iluminação do espetáculo.

A presença de gestos mais reconhecíveis ou próximos do cotidiano, que nos remetem mais facilmente às questões impostas socialmente às mulheres (como a necessidade seguir determinado padrão de beleza) aparecem pontualmente na obra, de modo que não constituem seu principal aspecto estruturante. Nesse sentido, é bastante particular a apresentação que a intérprete faz sobre o tema tratado. A título de exemplo, a questão do gênero feminino é pouco ou quase nunca abordada no espetáculo sob o ponto de vista sexual ou erótico – mesmo quando, no trecho final da obra, a intérprete se desnuda.

Na maior parte do tempo, a movimentação de Rozeane constitui-se de gestos abstratos que denotam mais essa luta/travessia da intérprete no seu caminho de auto(re)conhecimento enquanto ser mulher, do que em uma explicitação para o público de quais seriam os percalços dessa busca. Dentre os gestos reconhecíveis, um se destaca por ser recorrente ao longo da obra. Por vezes Rozeane levanta seu braço direito, estendido. Se primeiramente esse gesto pode sugerir uma resposta de presença (quando respondemos a uma chamada, por exemplo), ou um pedido de permissão para falar, será sua sutil alteração que marcará o início da transformação da intérprete no trecho final do espetáculo. Em determinado momento, Rozeane estende mais uma vez seu braço direito, porém dessa vez cerra seu punho – o braço que antes demarcava uma solicitação, agora arma-se para a luta, empoderado.

A partir dessa mudança aparentemente sutil, a intérprete se encaminha para uma transformação maior e mais evidente. Após se despir do vestido e das peças íntimas pretas que trajava na maior parte da obra, Rozeane encaminha-se em direção a um véu translúcido, que jaz no fundo do palco.

A suavidade do tecido, a transparência do mesmo sob a luz que revela e esconde o corpo desnudado da intérprete, seu tingimento que vai de um tom rosáceo à púrpura, e o modo como o véu é manipulado pela intérprete na ação de envolvê-lo em seu corpo até transformá-lo em outra espécie de vestimenta contrastam com os gestos e a estética da primeira parte da obra, gerando um momento de sutil delicadeza dentro da obra.

Apesar de fazer uso de elementos que, a priori, poderiam ser lidos nesse momento como mais próximos de clichês do que seriam características próprias ao universo feminino, a maneira como tais elementos são introduzidos ao longo da dramaturgia da obra não abrem espaço para essa possível leitura equivocada.  Seria interessante, contudo, que tal momento de exploração/transformação se demorasse um pouco mais, uma vez que ocorre já no final do espetáculo e poderia ter suas potências, já apontadas, ainda melhor aprofundadas em contraste com o restante da obra.

Ao fim do ritual de (Eu) Fêmea, a intérprete aparenta uma maior plenitude, mas sem descansar, pois sabe que as batalhas não estão todavia vencidas.

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