Por Diogo Spinelli
04/05/2017
Talvez seja correto afirmar que a dança possui uma vantagem sobre o teatro no que diz respeito à sua recepção. No teatro, mesmo que as propostas contemporâneas deixem difusas suas fronteiras, via de regra recebemos/lemos a obra num primeiro momento a partir de um viés racional que procura identificar certa coesão entre os elementos apresentados: qual foi o discurso articulado naquele espetáculo, do ponto de vista do campo das ideias, que justificou determinadas escolhas em detrimento de outras?
A dança, por sua vez, parece já há muito desobrigada de tal limitação, possibilitando com que nos permitamos entrar em contato com a obra de forma mais livre, através de outros canais que não necessariamente a razão. Esse foi um dos pensamentos que me perpassaram durante a apresentação do espetáculo Sopros da Companhia H, na 10ª edição do Encontro de Dança. A obra recebeu o Prêmio FUNARTE Klauss Vianna de 2015, prêmio destinado às produções de dança, o que permitiu à companhia gaúcha circular com apresentações gratuitas por quatro estados do Brasil.
O aspecto que mais me parece evidente em Sopros é aquele vinculado a um elemento que identifico como a presença da ludicidade em cena. Desde o início do espetáculo parecemos estar diante de garotos que brincam, piás bem gaúchos que jogam uns com os outros em suas movimentações que quase nunca cessam, que quase não dão respiro nem nos deixam respirar. Sempre alguém está se movendo ou movendo alguma parte do seu corpo em cena.
Há uma leveza e uma fluidez nas movimentações – evidenciada pelo modo como são trabalhadas as articulações do corpo (levadas ao extremo pelo intérprete Driko Oliveira) – que remete de certa forma também ao elemento do ar, do sopro, e que também acaba por contribuir com esse aspecto quase jovial da obra. Mesmo quando são realizados gestos de maior violência, como quando são disparados chutes em corpos acossados no solo, falas são interrompidas por mãos que calam, ou quando estamos diante da presença de figuras mascaradas que aludem a certa agressividade, essa qualidade aérea e lúdica parece de manter intacta: estamos diante de um jogo, ninguém irá se machucar de verdade.
Outro aspecto que perpassa a movimentação é aquele relativo à contaminação dos corpos pelos movimentos gerados pelos outros. Esse princípio nos é apresentado desde a primeira imagem da obra, e acaba por permear toda a coreografia, mesmo que aconteça apenas algumas vezes de modo mais figurativo, quando os corpos dos bailarinos movimentam-se a partir do assopro de outro dos intérpretes.
A essa escrita dos corpos que brincam – e não à toa utilizamos o termo brincar para nos referir ao modo como nos relacionamos com determinadas manifestações populares tradicionais – está justaposta em Sopros uma discussão sobre a identidade gaúcha, suas tradições, e o sentimento de pertencimento a elas ou não. Se essa questão nos é trazida pela trilha sonora, composta em sua maior parte pela alternância entre sons urbanos (notadamente de meios de transporte) e de músicas que remetem aos ritmos tradicionais gaúchos revisitados, aparece também textualmente localizado na figura de uma das intérpretes, que profere frases nas quais diz odiar chimarrão, não gostar de um grito típico gaúcho – não consegui compreender o termo exato, mas me parece ser uma manifestação correspondente à vaia cearense - entre outras sentenças que expressam uma ideia de rompimento com aquilo que é associado à cultura do Rio Grande do Sul.
Essa mesma intérprete, que adquire em determinado ponto certo protagonismo, nos momentos de trilha sonora urbana parece procurar alguém que partiu, que está do outro lado da fronteira – ou talvez, busque nos aviões que vê, nos trens que ouve, uma possibilidade para sair desse lugar ao qual não se sente pertencente. Por outro lado, outros intérpretes reforçam a identidade gaúcha, seja quando esse grito típico é proferido seguidamente por um dos demais intérpretes, ou quando é possível ver a incorporação de alguns passos que remetem às danças tradicionais gaúchas em meio às coreografias.
Além dessas duas escritas, justapõe-se também a escrita da luz (que se utiliza de cores fortes e contrastantes, como o verde, o azul e o vermelho, alternando-se majoritariamente entre essas três) e do figurino – escritas essas que me pareceram de mais difícil leitura. Quanto ao figurino,no início do espetáculo todos trajam peças de tons que variam entre o preto, o cinza e o azul escuro. Depois de transitarem para peças de um azul mais claro – no que ainda poderia remeter ao ar e à leveza – há, talvez, a maior ruptura do espetáculo. No fim de uma coreografia na qual dançam dois casais em azul, surge uma figura em tons terrosos, sendo tracionada por outra figura que porta trajes da mesma cor através de um tecido de cor vermelha que lembra tecidos acrobáticos de circo.
A partir de então ocorre uma pequena sequência na qual predomina a cor vermelha e introduz-se outros tecidos e um guarda-chuva vermelho furado, elementos que não estão presentes em nenhum momento anterior ou posterior da montagem [seria esse momento uma alusão ao sopro enquanto doença cardíaca?]. Depois dessa quebra, chegamos ao momento final no qual todos trajam tons terrosos. Apesar de haver esse grande e inesperado rompimento estético no caminho que até então estava sendo construído, não há, contudo, uma modificação substancial na qualidade dos movimentos dos intérpretes que coadune com ele, antecipe-o ou justifique-o, causando estranhamento ao espectador.
Não sei se posso afirmar ter compreendido as escolhas da obra, no que tange essa justaposição entre a experimentação corporal a partir do sopro, as identidades gaúchas e as trocas de figurinos na possível construção de um sentido coeso. Ainda assim, o aspecto do jogo presente ininterruptamente fez com que eu me mantivesse atento à obra de seu início ao fim. E no final, me perguntasse, como me pergunto novamente: será que é preciso compreender um espetáculo de dança?