Conformidade com a tradição

Por George Holanda
04/05/2017

A Companhia H discute em seu trabalho Sopros sua própria origem gaúcha. Talvez toda pessoa herdeira de uma tradição em algum momento questione sua herança e de alguma forma a rejeite. É conhecida a forte carga cultural que possui o Rio Grande do Sul, pelos seus hábitos e expressões, e esta deve, além da preencher, pesar sobre seus filhos, gerando inconformidades. Difícil não pensar que tais conflitos podem ser mais comum aos jovens. E a reparar pela idade dos bailarinos estes devem estar neste momento. E é por meio da imagem de um sopro que se dá a reflexão sobre o assunto, um sopro de vento ou de alguém.

A coreografia, no início, se concentra nos movimentos possíveis a partir do sopro, com os bailarinos ora soprando, ora sendo levados, tudo executado de forma virtuosa. Ocorre que a própria ideia do sopro acaba por se diluir ao longo do trabalho, dando espaço a coreografias com influências outras, inclusive da própria cultura gaúcha. O sopro é o impulsionador para que os bailarinos alcancem suas memórias. E estas memórias se dão por movimentos com tons infantis, em que brincadeiras de crianças se misturam à coreografia. A memória, no caso, vem carregada com um clima de certa forma romantizada, pela luz e pelos próprios movimentos. E junto a isso tudo vem o dilema de adequar-se aos costumes ou afrontá-los.

Se o conflito gerado pelo questionamento da herança cultural encontra-se presente nos movimentos, fica ainda mais marcada pelas falas dos bailarinos. Em vários momentos, eles dizem expressões gaúchas, subvertendo-as e expressando insatisfação, como, por exemplo, ao se dizer que não se gosta de chimarrão. O reforço da fala torna o tema por demais evidente, afastando eventuais sutilezas que ainda pudessem perdurar.

Como a questão da tradição parece possuir raízes profundas, duas figuras inesperadas surgem já no avançado da obra, simbolizando a relação com os pais. A primeira delas é composta de um bailarino que por meio de um longo pano vermelho (como o sangue que remete à família) segura outro, representando uma figura paterna que segura um filho pela força. A segunda é uma figura materna: uma bailarina com um longuíssimo vestido vermelho e com gestos delicados sentada sobre um filho (outro bailarino), acalmando-o quando este se agita. Curioso pensar que as duas figuras se sobrepõem aos filhos, domando o impulso questionador deles.

O trabalho parece enxergar a insatisfação apresentada como uma luta perdida, pois acaba que os bailarinos resultam por aceitar a herança que lhes cabe, sendo as últimas coreografias as mais gaúchas, inclusive na música. Assim, os dançarinos fazem as pazes com a própria origem, mas a discussão sobre o que poderia implicar o questionamento da tradição termina simplificada. A exigente coreografia prova toda a capacidade dos bailarinos, mas o conflito presente nela se esvai para dar lugar a um final apaziguador, em que a aceitação do peso da tradição se impõe aos conflitos íntimos. A tradição resta ingenuamente contestada.

Ficha Técnica:

Direção e Coreografia: Ivan Motta

Ensaiadora: Rossana Scorza

Elenco: Adriano Oliveira, Andressa Pereira, Letícia Paranhos, Roberto Volkmann\, Mariano Neto e Samuel Rodrigues

Produção: Lucida Desenvolvimento Cultural/Luka Ibarra

Assistente geral: Carolina Mascia

Criação de Luz: Maurício Rosa

Trilha Sonora Pesquisada: André Birck

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