Por Diogo Spinelli
09/05/2017
Nessa segunda-feira dia 08 de maio foi apresentada no Teatro Hermilo Borba Filho, pelo Trema! Festival de Teatro, a primeira parte da Trilogia Abnegação, do grupo paulista Tablado de Arruar. Nos dias seguintes, ainda compondo a programação do festival, serão apresentadas as duas outras obras que completam a trilogia.
Nos dias anteriores, nesse mesmo espaço, foi possível acompanhar Diga que você está de acordo! MÁQUINAFATZER, do grupo Teatro Máquina, e ao assistir as duas montagens em sequência, me foi impossível não as relacionar. Em parte porque, mesmo que possuam pontos de partida distintos, há escolhas, temas e até mesmo dados objetivos que aproximam as duas encenações; e em parte porque, na tarefa de escrever sobre as obras que conseguirei acompanhar durante o festival, começo a construir involuntariamente um mosaico composto pela sucessão e justaposição das obras selecionadas pela curadoria dessa edição do Trema!, cujo cunho político aparece até o momento como principal eixo organizador.
Ao adentrarmos o teatro, a ação já se desenrola no palco. Se em MÁQUINAFATZER estávamos diante de um diminuto esconderijo, em Abnegação I o espaço esfumaçado ocupado por uma mesa central daquelas de escritório ou de professor, cercada por um punhado de cadeiras discordantes entre si – móveis ajuntados a esmo, que em sua proposital aleatoriedade, remetem com exatidão a muitos dos ambientes de administração pública – será o lugar no qual se desenrolará a maior parte da trama. Ao longo da encenação, a sensação de claustrofobia gerada nesse ambiente burocrático se torna ainda mais evidente, conforme acumulam-se garrafas de bebidas alcoólicas, fumaça de cigarros e charutos, e papeis rasgados sobre a mesa, enquanto acompanhamos a trajetória de cinco figuras (quatro homens e uma mulher, em outra coincidência entre as duas obras) em direção a uma armadilha que parece ter sido armada por eles mesmos e da qual não parecem possuir escapatória.
Na primeira imagem trazida pelo espetáculo, encontra-se à mesa, sentada de costas, a figura imóvel de um homem. Outros dois homens movem-se no espaço e reportam-se vez ou outra ao homem sentado, em sussurros. A partir dessa simples ação e de como a cena está disposta, já é possível compreender a hierarquia que se estabelece entre os três, sem que esse dado nos seja dito. Assim que todos os espectadores se encontram em seus lugares, irrompe em cena, embriagada, a quarta figura masculina.
A partir de então, o silêncio que permeava o prólogo dará espaço para uma dramaturgia verborrágica, permeada por lapsos e interrupções e que, a seu modo, se aproxima de algum modo à fala cotidiana, na qual os assuntos entrecortam-se e muitas vezes evitamos tratar nominalmente dos temas de que realmente falamos. Se em MÁQUINAFATZER a encenação propõe a quase total ausência ou incompreensão da fala, Abnegação I apresenta uma dramaturgia difusa, na qual os assuntos principais estão suspensos, não sendo nunca abordados de maneira direta. A interpretação do elenco reforça ainda mais essa opção que beira o realismo, mesmo que no percorrer da obra existam momentos de estranhamento que colocam em tensão essa camada mais próxima ao real, como se lapsos expressionistas fossem enxertados na obra (como na cena do strip-tease da mulher, por exemplo).
Saem os soldados de MÁQUINAFATZER, entram os membros da cúpula de um partido (ainda que o tratamento dado pela obra faça com que esses integrantes nos sejam apresentados mais como gângters de uma organização mafiosa do que políticos pertencentes a um partido político). A figura feminina permanece em sua função de servir e em seu papel de subserviência em ambas as montagens, ainda que em Abnegação I não seja a sua figura aquela que traz a maior contraposição entre as relações.
Em vez da guerra, temos como conflito externo (ou anterior) aquilo que é tratado em cena apenas como o “acidente”. Ainda que não tenhamos acesso com exatidão ao que se trata, pressupõe-se referir-se a algum esquema de corrupção praticado pelo partido e que está prestes a ser publicamente revelado.
Dentre as cinco personagens, é a figura de Celso (em evidente alusão a Celso Daniel, prefeito da cidade de Santo André – mencionada verbalmente na dramaturgia – eleito pelo Partido dos Trabalhadores, e cujo assassinado em 2002 permanece não totalmente esclarecido) que servirá de contraponto na sua busca por tentar compreender o que de fato ocorreu no “acidente”, e consequentemente, responsabilizar os culpados por ele. Apesar de colocar-se numa posição de diferenciação em relação aos demais, no processo que percorre todo o primeiro segmento do espetáculo, e no qual ficam evidentes os jogos de poder que visam suprimir as contradições internas dessa cúpula, Celso compreende que, estando todos implicados no que quer que tenha acontecido, aceitar-se corromper talvez seja a única alternativa aceitável.
Apesar de se encaminhar para o que parece ser o desfecho do espetáculo no fim dessa primeira e grande sequência, a obra ainda possui mais dois excertos pequenos. Ainda que pareçam apêndices à primeira parte, é sobretudo através do último deles que vemos que as questões relacionadas ao “acidente” estão longe de serem apaziguadas, como poderia ficar sugerido caso a obra terminasse ao fim da primeira grande cena. Esse recurso acaba por deixar a obra em aberto, em suspenso (tal como ocorre em MÁQUINAFATZER), abrindo caminho para as obras seguintes da Trilogia Abnegação e para a certeza de que, na sucessão irreversível de conluios e mais conluios, piores dias virão.