Autópsia.

Por Diogo Spinelli
11/05/2017

Não é possível passar incólume à Abnegação II – O começo do fim, segunda parte da Trilogia Abnegação, apresentada nesta terça-feira dia 09 de maio pelo Tablado de Arruar na programação do Trema! Festival. Acompanhar as duas horas de duração da agressiva montagem revela-se uma experiência tão incômoda e desagradável quanto presenciar um processo de exumação.

O espetáculo estabelece-se através de um subterfúgio: em seu início, um áudio nos contextualiza sobre o assassinato do ex-prefeito de Santo André, Celso Daniel, ocorrido sob circunstâncias suspeitas num momento-chave para o Partido dos Trabalhadores (Celso Daniel foi assassinado quando começava a coordenar a campanha presidencial que acabaria por eleger Lula para seu primeiro mandato presidencial) e cujos detalhes nunca foram devidamente esclarecidos. Após evocar Celso Daniel, o mesmo áudio afirma que o espetáculo apresentado se trata de uma obra de ficção. A partir dessas duas informações, é clara a intenção de demarcar Abnegação II  como uma versão [ficcional] sobre como pode[ria] ter se desenrolado a morte do ex-prefeito.   

Mesmo a sinopse informando que a ação da segunda parte da trilogia se passa 15 anos antes dos acontecimentos ocorridos na primeira das obras, de certa maneira, pode-se ler a narrativa de forma linear.  Assistindo aos espetáculos em sequência, é possível identificar o começo de Abnegação II como uma continuidade da narrativa a partir do ponto no qual a mesma havia sido deixada em Abnegação I, primeira parte da trilogia. Reforça essa leitura a manutenção das mesmas figuras representadas pelos mesmos atores, bem como a permanência de alguns dos nomes destas, sendo a maior mudança aquela que opera na figura que na primeira parte da trilogia atendia pelo nome de Celso (em referência indireta à Celso Daniel), e que em Abnegação II passa a atender pelo nome de Jorge, talvez justamente para não deixar tão evidente a já óbvia fusão da personagem à figura do ex-prefeito.

Na primeira cena da montagem somos informados da recente eleição de Jorge para ocupar o cargo de prefeito. Em vez de comemorar a conquista com seus partidários, Jorge está às voltas com um dossiê que comprovaria o enriquecimento ilícito de seus companheiros. Apesar de se mostrar conivente com associações desonestas na esfera macro do partido em prol da governabilidade, é no âmbito do enriquecimento particular que a ética de Jorge parece ser atingida. Como já sabemos de antemão tendo a referência de Celso Daniel como pano de fundo, a convicção de Jorge em levar adiante a investigação e possível publicação de seu dossiê se converterá em seu erro trágico, motivando seu assassinato. No alongado percurso no qual são evocadas passagens relativas aos últimos dias de vida de Celso Daniel, sempre na esfera íntima, outros elementos já utilizados em Abnegação I retornam à cena, mas geram agora imagens mais grotescas e repulsivas (como o momento em que uma das personagens arremessa grandes doses de talco em seu próprio rosto em alusão ao uso de cocaína), e sempre reafirmam uma associação entre poder, dinheiro, sexo, drogas e crime.

A essas cenas, nas quais acompanhamos a narrativa da morte anunciada de Jorge, e que possuem um registro dramático, tanto do ponto de vista dramatúrgico quanto interpretativo, intercalam-se cenas episódicas nas quais os atores, com roupas neutras, dialogam entre si, porém encontram-se imóveis e virados para a frente. Essas cenas, demarcadas também por uma mudança de luz específica, constroem uma dramaturgia paralela, na qual são apresentados diálogos entre vítimas e agressores. Nesses diálogos, que remetem tanto temática quanto formalmente aos escritos do dramaturgo inglês Martin Crimp, práticas violentas são descritas em detalhe de maneira naturalizada e banalizada, o que auxilia a aumentar o mal-estar causado pela montagem.  Todas as cenas dessa narrativa, invariavelmente, aludem em algum momento à violência específica contra mulheres, sobretudo aquelas de cunho sexual – frases como “me deixa enfiar o pinto em você” e similares aparecem inúmeras vezes ao longo das cenas, permeando, nesse caso, as duas narrativas paralelas.

As duas estruturas intercalam-se nas primeiras cenas da montagem até o momento no qual, sequestrado, Jorge é submetido a uma sessão de tortura que o levará a óbito. Nesse momento, as duas tramas colidem, evidenciando as ligações existentes entre política e submundo do crime. Ainda que a tensão gerada através da dupla narrativa aumente o espectro contextual da obra, ao caracterizar uma sociedade generalizadamente violenta e violada, o tratamento dramático utilizado nas cenas relativas à narrativa do assassinato de Jorge/Celso Daniel acaba por particularizar as relações das personagens apresentadas, tornando-as planas e pouco contraditórias, quase tipificando-as. Assim, Abnegação II acaba por restringir-se a uma esfera privada, perdendo a oportunidade de colocar em debate as questões que o caso evoca num contexto mais amplo, público e político.

O assassinato de Celso Daniel, que dá origem a Abnegação II e sobre o qual ela é construída, traz à baila o dilema ético que questiona se os fins justificam os meios. Sendo o sistema político vigente corrompido, até que ponto não seriam válidos alguns sacrifícios no percurso, a fim de possibilitar a implementação de um suposto projeto de mundo melhor? Quando Celso Daniel é torturado e assassinado em 2002, o que sua morte evidencia? Ela demarca o começo do fim das utopias, dos sonhos, de um projeto de governo, de uma ideia, de um partido, de um sistema político, de um país? Porém, somente no epílogo do espetáculo é esboçado esse possível e potente encaminhamento do debate, na qual a necrópsia cênica da morte de Celso Daniel perde em parte sua pessoalidade, para adquirir maior dimensão simbólica, histórica e social.

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