Do que sobrou.

Por Diogo Spinelli
11/05/2017

Nesta quarta-feira dia 10 de maio, foi apresentada no Teatro Hermilo Borba Filho a última parte da Trilogia Abnegação, Abnegação III – Restos, do grupo paulistano Tablado de Arruar. Os três espetáculos que compõem a trilogia foram apresentados em três dias seguidos, como parte da programação do Trema! Festival.

Diferentemente das obras anteriores da trilogia, em Restos o foco não mais recai sobre os acontecimentos vinculados aos integrantes da cúpula de um partido político e passa a fixar-se em núcleos familiares que retratam a sociedade brasileira atual. Há assim, uma gradação nas três peças: se em Abnegação I temos somente retratado o ambiente e os integrantes do partido, e em Abnegação II – o começo do fim temos duas narrativas intercaladas, nas quais são representados ora os acontecimentos relativos aos integrantes do partido e ora situações de cidadãos comuns frente a contextos de violência, em Abnegação III - Restos, será essa última narrativa que será retomada, ainda que a violência retratada seja de outra natureza, mais sutil e suavizada  do que a exposta em O começo do fim.

Há também uma radicalização com relação à proposta de interpretação. Se na segunda narrativa de O começo do fim os atores já se encontravam de pé, imóveis, olhando fixamente para frente enquanto dialogavam entre si, em Restos, os atores pouco se movem, permanecendo sentados a maior parte do tempo nas seis cadeiras idênticas que compõem o cenário em seus figurinos cotidianos em tons de cinza. Seus braços permanecem estendidos ao longo do corpo, inertes, cabendo ao elenco compor as diferentes figuras que representam somente através de pequenos movimentos de cabeça, nuances de expressões faciais e entonações vocais. São quase que como cabeças flutuantes, sem corpo, numa imagem que remete ao teatro niilista de Dias felizes de Beckett.  Como se estivéssemos diante de um mundo reduzido à ação vocal, no qual todos tivessem[os] opiniões sobre tudo, e as despejassem[os] initerruptamente para pessoas que não as ouvem realmente porque também têm suas próprias opiniões a serem emitidas (e ignoradas). Ou ainda como se – colocando as três montagens em perspectiva – os políticos de fato fossem os únicos passíveis de ação, enquanto a população permanece em seu estado de apatia e imobilidade.

Desse modo, muito se fala e pouco se faz nas cenas que compõem Restos: acompanhamos variadas situações nas quais núcleos familiares diversos expõem, através de suas falas cotidianas, relações, opiniões e pensamentos esvaziados. É possível detectar a perene presença de uma camada de podridão que dá base aos discursos proferidos, mas à qual as figuras parecem ter se acostumado ao ponto de não mais se incomodarem com ela – como quando naturalizamos e convivemos com a imunda presença dos rios poluídos de São Paulo sem mais a notarmos.

Está tudo bem, mesmo que não esteja: tudo segue em uma mesma e única nota de passividade, como se, ao não nos darmos conta de que a partir do final do primeiro mandato de Dilma Rousseff como presidenta nosso mundo já não fosse mais o mesmo (como situa temporalmente a única projeção que inicia o espetáculo), continuássemos a tocar nossas vidas exatamente como antes, entorpecidos. A estrutura dramatúrgica adotada (bem como o registro interpretativo) aparecem de forma retrabalhada na narrativa do núcleo familiar de Branco: o cheiro do lírio e do formol, espetáculo mais recente do dramaturgo e diretor (ao lado de Clayton Mariano) da Trilogia Abnegação, Alexandre Dal Farra, evidenciando a continuidade de sua pesquisa nos campos da dramaturgia e da direção.

Comparado às obras anteriores, Restos é mais leve, chegando até mesmo a possuir lampejos de comicidade – que talvez sejam favorecidos pela maior facilidade de identificação do público com as figuras apresentadas nesta obra em detrimento das que compõem as duas partes anteriores da trilogia. São personagens cotidianas e reconhecíveis, tal qual são reconhecíveis as suas disfunções, e com as quais, em menor ou maior grau, já entramos em contato.

Não havendo acompanhado as demais obras da trilogia, ou não tendo essa informação de antemão através da leitura da sinopse da montagem ou de algum outro texto publicado sobre a obra, torna-se improvável o estabelecimento da conexão entre um ou mais personagens que compõem cada um daqueles núcleos familiares com o Partido dos Trabalhadores – a não ser quando isso é frisado pelo texto, ou quando o partido é nominalmente citado, o que ocorre em no máximo duas das situações apresentadas. Talvez esse dado até esteja presente nas demais cenas, mas apareça soterrado em meio à prolixidade das informações emitidas continuamente por aqueles indivíduos.

O final da montagem talvez seja aquele que melhor simbolize o momento atual em que nos encontramos enquanto sociedade brasileira: às cegas e expostos à um período de trevas que parecíamos não antever, procuramos possíveis inimigos e formas de sair da escuridão que talvez tenhamos nós mesmos ajudado a construir, mas não temos mais certezas de quem somos, nem de onde estamos e nem mesmo do que buscamos. 

Clique aqui para enviar seu comentário