Um brinde ao corpos que podem substituir ideias.

Por Diogo Spinelli
12/05/2017

 Não é uma tarefa fácil escrever sobre Orgía ou de como os corpos podem substituir as ideias sem revelar muito do que os poucos espectadores (apenas trinta por sessão) encontrarão pela frente ao se disporem a participar dessa obra teatral itinerante. E é aí que reside a dificuldade: como escrever sobre o espetáculo sem inviabilizar a experiência daqueles que ainda entrarão em contato com o mesmo? Porque, em grande parte, Orgía (grafado assim mesmo, com acento, em referência à palavra no idioma castelhano) é sobre entrar em contato com o desconhecido e permitir-se deixar se influenciar sem julgamentos pela experimentação de conhecer outras sensações, corpos e relações. É sobre um processo de redescoberta de si mesmo, a partir do contato com o outro; outro esse que pode ser uma pessoa, como pode ser também uma cidade, um gosto, uma língua, uma cultura.

Tendo como ponto de partida o livro Orgia: os diários de Túlio Carella, publicado em 1968, o segundo espetáculo do grupo paulistano Teatro Kunyn ganha outras camadas de significação ao ser realizado na cidade de Recife, compondo a programação do Trema! Festival. Afinal, foi a partir do contato íntimo e carnal do autor com a cidade, e, sobretudo, com seus homens, que Carella – professor argentino convidado a lecionar em Recife nos idos de 1960 –  registrou nas páginas de seu diário suas descobertas e experiências homoeróticas vivenciadas na capital pernambucana.

Assim, percorrer, real e simbolicamente, os caminhos que devem ter sido feitos há quase seis décadas por Carella potencializa e fricciona ainda mais as relações entre as camadas real e poética (que nesse caso, acho um termo mais adequado do que ficcional) do espetáculo. Particularmente, como estou em minha primeira visita à Recife, ao tomar parte na obra realmente caminhei por lugares desconhecidos, e me deparei com belezas imprevistas, assumindo o ponto de vista de estrangeiro frente aos encantos recifenses.  Ainda que residisse na cidade, o teatro à deriva proposto pela obra possui a potencialidade de reconduzir nossos olhares para as paisagens, mesmo que cotidianas, e para as pessoas que observamos – sobretudo aquelas do gênero masculino.  

O espetáculo se divide em três momentos. Em cada um deles, são propostas relações distintas no que tange a exploração espacial e relacional dos atores conosco, entre si, e com a cidade. Se Dizer e não pedir segredo, primeira obra do Teatro Kunyn, era realizado em ambientes privados, tendo sido apresentada em apartamentos e outros espaços menores, Orgía retoma a intimidade dessa experiência anterior antes de lançar-se ao exercício público das ruas. E é aí que o espetáculo amplia sua dimensão política: retratar imagens que sugerem a homoafetividade masculina em espaços públicos, passadas cinco décadas da publicação do livro, ainda é um exercício que exige coragem e que clama por visibilidade; ainda mais quando voltam a tomar força discursos de ódio antiquados e conservadores.   

Nesse sentido, ainda que traga também os dissabores da trajetória solitária de Carella – e de seu conturbado processo de recondução à Argentina – é no aspecto positivo do percurso de sua jornada de descoberta de novos prazeres que a narrativa se fixa.  Assim, o Teatro Kunyn, que desde sua fundação lança-se na pesquisa da investigação de um teatro voltado às questões relativas à homossexualidade masculina, faz de Orgía um convite para que saiamos às ruas, sem pudor ou medo de expressar nossos afetos, desejos e tesões.  

Se os diários de Túlio Carella serviram de morada aos integrantes do Teatro Kunyn, em seu reencontro com Recife, Orgía volta a habitar as ruas, casas e pessoas que tiveram a oportunidade (e o prazer) de fazer parte dela.

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