Por Diogo Spinelli
09/05/2017
16h15. Entro na sala do MUAFRO – Museu de Artes Afro Brasil, para acompanhar a performance Utopyas to every day life, das artistas Flavia Pinheiro e Carolina Bianchi, que deve possuir a duração total de 180 minutos. Chove em Recife e chove dentro da sala: através de um mecanismo de tubos, pinga em três pontos da sala um líquido tingido com a cor azul. Já estão na sala as duas performers/jogadoras em suas roupas que causam certo efeito color blocking: Carolina em vermelho e Flavia em azul. O jogo já se encontra iniciado, ainda que eu não consiga identificar suas regras, e me pergunto – sem me preocupar com teorias – o porquê de não utilizarmos mais a nomenclatura de jogador em vez de performer. Talvez o chão padronizado de tacos da sala do MUAFRO me remeta ainda mais a ideia de jogo. Penso em tentar escrever uma crítica em processo durante o evento, e que talvez essa fosse a forma mais justa de escrever sobre ele. A sala em silêncio é ocupada pelos sons de britadeira que vêm de fora, das obras de revitalização do Recife Antigo, e dos cantos dos homens que trabalham nelas every day.
16h25. Em uma de suas movimentações, um dos tacos que compõem o piso é retirado por Flavia. Tudo parece poder ser estímulo para o jogo. As jogadoras se aproximam pela primeira vez uma da outra. Até agora, não haviam estabelecido uma maior relação entre si. Lá fora, as britadeiras continuam. A movimentação das artistas me faz recordar das aulas do Antonio Januzelli, o Janô, na USP, que começavam com longos períodos do que ele chama de “laboratório do brincar”. Um set light é aceso, depois, outro. Sons de pás de construção lá fora. Não consigo não pensar no mundo exterior. Um som alto é ligado na sala. Começo a conseguir melhor definir as particularidades das movimentações de cada jogadora: há algo de caricatural e debochado nos movimentos de Carolina (além de certa fixação por um movimento pélvico), ao passo que Flavia se mostra mais técnica e compenetrada, ainda que vez ou outra escape da sua boca um sorriso.
16h35. Ainda que nós enquanto público não sejamos desconsiderados pelas jogadoras, tenho dúvidas sobre o quanto o jogo está aberto para nós e o quanto podemos interferir no mesmo. As orientações entregues antes de adentrarmos a sala não são claras quanto a isso. A dúvida é maior porque começam a surgir tentativas de comunicação por parte de algumas pessoas da plateia, principalmente de um especta-jogador específico, que por ora, está sendo ignorado pelas mesmas em suas tentativas de interação.
16h40. Take my breath away.
16h45. Me parece que os caminhos de jogo escolhidos para enfrentar essa trajetória no tempo e na busca de sair de um estado cotidiano sejam o da exaustão descontrolada por parte de Carolina e de uma demonstração de força, precisão e alongamento por parte de Flavia. Em definitivo, não devemos interferir no jogo que se estabelece entre as duas.
16h50. Liga-se o terceiro set light. O especta-jogador já mencionado continua em sua própria proposição de jogo. Ele encontra-se sem camisa agora, em uma viagem pessoal – há de se considerar que à sua maneira, ele também está fazendo uso da instalação como forma de encontrar seu estado de utopia.
17h00. O contato entre as duas jogadoras leva até algumas quedas, nas quais Flavia derruba Carolina, mas essa ação logo é substituída. De modo geral, os jogos propostos até aqui não são levados aos limites do desgaste em suas explorações. Surge sempre uma novidade que os interrompem e substituem. As músicas interferem determinantemente como elemento de jogo para as artistas. Já não cai mais água das goteiras, e Flavia inicia a ação de secar a parte central da sala.
17h10. Penso que a qualidade dos movimentos de Flavia me remete à artes marciais, sobretudo um andar específico, ao passo que Carolina também possui um movimento recorrente que me faz pensar num passo de deslocamento de ballet executado de forma caricatural. As jogadoras despem-se de suas camisas. Há algo no trabalho que se equilibra entre o debochado e o conceitual. As goteiras voltam a gotejar, e aquele mesmo especta-jogador utiliza-as como chuveiro.
17h20. Flavia joga com o especta-jogador, empurrando-o contra a parede seguidas vezes. Há certa agressividade em sua ação. Tendo a entendê-la como uma maneira de comunicar dentro do jogo, que o jogo pertence a elas duas. Como deixar claro de forma não-verbal que não se trata daquele tipo de participação? Flavia retira seu sutiã e Carolina suas calças. Transparece certo esgotamento entre elas, mas estamos apenas na metade.
17h35. A essa altura já me dei conta de que não estou escrevendo um texto crítico, mas me pergunto como poderia fazê-lo. Me recordo da crítica de Heloísa sobre a performance A arte precisa ser e penso que preciso relê-la.
17h40. As jogadoras brincam de escorregar na água. Num desses movimentos, Flavia arranha suas costas no solo. Lembro que preciso citar que uma vez iniciada a música, ela até então não foi desligada, tocando uma playlist que, a princípio, parece estar em modo aleatório.
17h50. Não consigo parar de olhar para o vergão nas costas de Flavia. Tenho vontade de ir ao banheiro, mas sinto que é importante permanecer na sala o tempo todo. Em alguns momentos, como agora, no qual as jogadoras trocam carícias, o jogo adquire fortes traços homoafetivos. Reparo que faz tempo que não temos uma música mais agitada sendo tocada. Talvez a playlist não seja aleatória, se encaminhando para músicas mais lentas nessa metade final.
17h55. Toca uma música agitada. DO DESAFIO DE SE COLOCAR EM MOVIMENTO E EM JOGO PUBLICAMENTE POR 180 MINUTOS.
18h05. O chão da sala já está quase todo molhado. Penso em desistir de fazer a crítica nesse formato. Muito do que escrevi até aqui me parece não fazer sentido ou não ter importância. As jogadoras estão agora só de calcinhas e joelheiras. O cheiro de Gelol invade minhas narinas. Às vezes é preciso adotar artifícios para conseguir continuar. A imagem das meninas seminuas na água me recorda Quando l'uomo principale è una donna [busquei o nome posteriormente no YouTube], de Jan Fabre.
18h15. Alguém lerá esse texto até aqui?
18h20. A noção de tempo parece ter deixado de existir dentro da sala, ou ter adquirido certa abstração, não fossem minhas anotações cronometradas. O mundo externo desapareceu faz tempo.
18h25. Aquele mesmo especta-jogador continua tentando jogar com as artistas, mas agora me incomoda profundamente sua presença masculina próxima aos corpos seminus das jogadoras. Para quem está assistindo, é clara a intenção das jogadoras de, ainda dentro do jogo, tirá-lo do jogo. A “dramaturgia” que sua figura causa reforça uma característica feminista da performance que não sei se viria tão fortemente sem sua intervenção. Ainda que não transpareça malícia de forma alguma nele, para mim a frase que me vem à cabeça é: Respeita as mina!
18h30. Pela primeira vez um especta-jogador vai até o dispositivo que toca a playlist e muda deliberadamente a música que estava tocando. Penso que é delicado mesmo, na proposta, saber quais são nossos limites de interação, mas continuo acreditando – como em qualquer jogo – que tudo vale se for a favor do jogo.
18h35. Decido mesmo ir ao banheiro. Sair e voltar para a sala pode também ser interessante e, no final das contas, está previsto nas instruções. Antes de sair, apoio meu caderno no chão molhado por um segundo, e minhas anotações borram-se quase todas.
18h45. Devo dizer que, definitivamente, a figura daquele especta-jogador criou um bom contraponto para as jogadoras. As duas acabaram de fazer um strike no mesmo, após usarem toda a extensão da sala molhada como pista de boliche. Os demais espectadores vão ao delírio.
18h50. A música é substituída por um áudio. As jogadoras, ainda em estado de jogo, parecem fazer uma sequência com elementos mais determinados. O áudio parece trazer o texto da carta de alguém, mas não compreendo em totalidade. Difícil entrar em contato com uma dramaturgia textual agora, mas parece-me que o áudio traz um pouco do ponto de partida para a ação que acompanhamos ao longo dessas três horas. Assim como naquela sala, há um mundo de coisas naquele áudio.
19h00. Após uma última música, as jogadoras estão agora deitadas, abraçadas, de olhos fechados. Demoramos alguns minutos para aplaudir, e o ato de aplaudir – ainda que eu entenda sua convenção – me parece totalmente inadequado. Parece que passamos por um mundo de coisas ali, juntos. Penso nessa capacidade e necessidade de encontrar caminhos para transcender, da necessidade de ter estratégias que nos retirem do cotidiano, e de espaços criados por nós mesmos para concretizarmos nossas utopias. Os corpos das jogadoras, parados, finalmente, são de uma inesperada e serena beleza.