Por Rafael Duarte
06/05/2017
Quando surgiu no cenário nacional, durante a campanha presidencial de 1989, o excêntrico doutor Enéas Carneiro dispunha de míseros 15 segundos para apresentar sua plataforma de propostas em horário eleitoral. Com a barba desgrenhada, careca e imerso num par de óculos grandes e quadrados, o que acentuava esteticamente sua miopia, revelava-se mais pela forma que pelo conteúdo.
O personagem nasceu como uma caricatura dos chamados “políticos nanicos” em virtude da baixa densidade eleitoral, foi taxado de maluco pela imprensa e virou lenda na política brasileira, marcado pela velocidade das falas na TV e, especialmente, pelo popular bordão de encerramento: “Meu nome é Enéas”.
Aquele estranhamento visual, no entanto, foi apenas o início de uma carreira política até certo ponto vitoriosa (em 2002 foi eleito com mais de 1,5 milhão de votos para deputado federal em São Paulo) pontuada por posições polêmicas e conservadoras, sempre fixando o clichê da luta por um Brasil melhor. Um nacionalista nato, convicto e contraditório.
E é justamente no conteúdo pouco explorado em 1989 que o ator pernambucano Márcio Fecher, que também assina o roteiro, se agarra para celebrar Enéas dez anos após sua morte. O espetáculo “Meu nome é Enéas: o último pronunciamento” foi apresentado pela primeira vez nesta sexta-feira (5), no Espaço Cênicas, em Recife, durante a programação do Trema Festival de Teatro, que segue até 14 de maio.
O cenário trouxe um pano cinza ao fundo, ora funcionando como telão exibindo imagens de Fecher incorporado ao personagem em locais públicos de Recife, e potencializou a performance do ator. Apesar do nervosismo aparente na estreia, Márcio Fecher vestiu um Enéas sóbrio sem ultrapassar os limites da excentricidade própria da personagem. Sobriedade também foi marca no figurino, com calça e sapato social pretos, camisa de linho azul e gravata lilás sob um paletó preto. Nada além do metier habitual da política. Os gestos e a voz do ator colocaram o público novamente frente à frente com o médico que defendeu a fabricação da bomba atômica pelo governo brasileiro, se posicionava contra o aborto e a união civil entre pessoas do mesmo sexo e, fosse apenas pelo que o político tem a dizer, provavelmente não provocaria o mesmo estranhamento de quando surgiu, em 1989.
Aliás, esse é o grande achado do espetáculo: trazer Enéas para os dias de hoje e mostrar que, concordemos ou não com as ideias defendidas por ele, o político representa hoje uma parcela significativa da população brasileira. Importante destacar que durante pelo menos quatro momentos do espetáculo, o ator foi obrigado a parar o texto diante de interferências da plateia, prova de que a provocação mexeu com o público.
O ponto de luz amarela no centro do cenário reveza com a luz aberta e funcionou como uma espécie de ampulheta marcando a passagem de tempo. Inclusive, o primeiro desafio enfrentado por Fecher antes mesmo de entrar em cena foi saciar uma curiosidade da plateia: como transformar 15 segundos em 55 minutos num grande e eloquente pronunciamento. O relógio de parede nas mãos de Fecher brincou com a relação de tempo entre o passado e o presente. O riso frouxo comum de antigamente diante da exótica figura de Enéas foi substituído pela reflexão das contradições da política tradicional apontadas e vividas pelo personagem.
Quase 30 anos depois da primeira aparição pública de Enéas, Márcio Fecher deu ao político o espaço e o tempo que ele nunca teve. Mas nem 55 minutos foram suficientes. Na última cena, numa bela sacada enquanto a luz apagava lentamente, o político ainda tentava falar e falar, como se continuasse ali, tentando e lutando contra o tempo.
O espetáculo desmistificou um Enéas desplugado do Brasil. Em tempos de tantas opiniões e posições divergentes, ele é apenas um a mais. E venhamos e convenhamos, mais estranho que a figura exótica de barba desgrenhada, careca e de grandes óculos quadrados defendendo a bomba atômica é, num espetáculo sobre política, a plateia não gritar Fora Temer.
Ficha técnica
Meu nome é Enéas: o último pronunciamento
Roteiro e atuação: Márcio Fecher
Revisão dramatúrgica: Rebeka Barros e Sérgio Brandão
Cenários, figurino e adereços: Rebeka Barros
Produção executiva: Samarah Mayra
Operador de luz e sonoplastia: Samarah Mayra
Pesquisa sonora: Márcio Fecher
Identidade visual: Danilo Mota
Fotografia: Caio Tiburtino
Realização: Gota Serena
Duração: 55 minutos
Classificação etária: livre