Música de protesto.

Por Diogo Spinelli
07/05/2017

Em outubro de 2016 o coletivo carioca Complexo Duplo estreava Cabeça (um documentário cênico), segunda obra de sua Trilogia Paramusical, cujo primeiro espetáculo, Contra o vento, havia estreado no ano anterior. Em 2016 também eram comemorados os 30 anos do lançamento do terceiro álbum de estúdio dos Titãs, Cabeça Dinossauro.  Quando foi lançado, em 1986, o Brasil recém-saído da ditadura civil-militar começava a lidar com sua dificilmente reconquistada democracia; na presidência, o peemedebista eleito como vice-presidente José Sarney preparava os caminhos para a escritura de uma nova Constituição para o país. Passados trinta anos, em 2016, o peemedebista eleito como vice-presidente Michel Temer assumia a presidência após um golpe de estado parlamentar e “constitucional”.  Onde erramos?

Tendo como material base para sua construção dramatúrgica, documental e musical o álbum Cabeça Dinossauro, Cabeça (um documentário cênico) configura-se como um acontecimento cênico híbrido – misto de show tributo e teatro documentário. Ao longo do espetáculo são executadas ao vivo pelos oito atores/cantores/performers as 13 faixas do álbum dos Titãs, costuradas com habilidade pela dramaturgia de Felipe Vidal (que assina também a direção e a cenografia da obra, além de compor seu elenco e dividir a direção musical com Luciano Moreira). Ao incorporar memórias dos intérpretes referentes ao álbum e trazer à tona materiais e dados diversos relativos à realidade político-social brasileira, a dramaturgia comenta, contextualiza e atualiza – muitas vezes de forma sarcástica e satírica – ao ano de 2016/7 os temas tratados por cada uma das músicas de Cabeça Dinossauro.

O formato híbrido proposto pela encenação me remeteu, curiosamente, a outro gênero teatral muito popular outrora nos palcos do Rio de Janeiro. Com todas as licenças poéticas implicadas nessa afirmação, pode-se dizer que Cabeça se constitui numa espécie de teatro de revista rock and roll e underground que passa em revisão não apenas os acontecimentos do ano como faziam as revistas cariocas do final do século XIX, mas trazendo em seu caldo permeado por referências pop e por um espírito contestador e transgressor uma retrospectiva crítica das últimas três décadas de nossa história. Ao apresentar determinado formato, Cabeça aponta para outros usos e hibridismos dos/nos elementos característicos do chamado teatro documental, alargando suas possibilidades.

Há uma aparente simplicidade na escolha dos elementos de cena, o que, na verdade, revela o quanto cada um desses elementos se adequa de forma justa à proposta da encenação. Tudo funciona em prol do espetáculo: o mapa de palco que se assemelha à composição cênica de um show de rock, a composição espacial realizada com a movimentação pontual de cases, as projeções que nos situam não apenas histórica, mas também musicalmente em nossa trajetória de reencontro com Cabeça Dinossauro faixa a faixa, a luz que encontra sua própria linguagem nesse híbrido entre show e teatro, e, sobretudo, a direção musical de Luciano Moreira e Felipe Vidal.

Se em seu álbum, os Titãs nos apresentavam a cada música [de protesto] elementos constituintes de nossa sociedade marginalizada e corrompida, o Complexo Duplo replica o mesmo processo a cada cena [de protesto]. Dentre elas, uma das mais potentes é aquela que traça o histórico do aumento exponencial do número de representantes de religiões cristãs em cargos políticos de 1986 a 2016, que introduz a faixa de número 3 do Lado A do álbum, Igreja. Num Rio de Janeiro marcado pela recente eleição do Bispo Marcelo Crivella para cargo de prefeito, tal alarde possui consequências ainda maiores e mais presentes. No Lado B do espetáculo, contudo, a dramaturgia tem uma leve diminuição de seu teor crítico, adquirindo ares mais pessoais – talvez guiada pela própria estrutura do álbum que originou o espetáculo. Todavia, isso não compromete de modo alguma a montagem e seu claro discurso de contestação.

Assistir à Cabeça no Trema! Festival me causou sensações ambíguas. A atualização cênica comentada de Cabeça Dinossauro, se por um lado traz novamente à tona a relevância e a contundência do memorável álbum dos Titãs de maneira extremamente jovem e potente, a crueza de sua atualidade não deixa de causar certo mal-estar: o que fizemos nesses trinta anos para que não só as letras, como todos os temas tratados em Cabeça Dinossauro permaneçam ainda tão ou cada vez mais presentes? Ou como é verbalizado em cena: o que faz com que o Brasil continue sempre em sua eterna sina de permanecer sendo uma Republiqueta de Bananas?

Há cerca de uma semana, completei 30 anos. Cabeça, trata-se, assim, de uma revisão sobre o meu período de vida e de toda minha geração. O que é possível fazermos para que daqui trinta anos não nos deparemos novamente e ainda em 1986?

Com seu discurso a um só tempo contestador, contemporâneo e popular, Cabeça (um documentário cênico) é uma montagem que o tempo mostrará ser tão antológica quanto o álbum que lhe originou.

 

Clique aqui para enviar seu comentário