Irrealidade incessante

Por George Holanda
31/08/2017

Um elemento primordial de traZ-humante, espetáculo do Camaleão Grupo de Dança, é o seu movimento incessante. Com direção geral de Marjorie Quast, direção artística de Inês Amaral e coreografia de Omar Carrum e Vladimir Rodriguez, os bailarinos não param de se movimentar durante o trabalho, num tempo um pouco mais lento que o que naturalmente desenvolvemos no dia-a-dia. Por vezes todos juntos se movimentam, outras vezes apenas um, mas ainda assim quando um para, outro continua o movimento, sempre no mesmo pulsar, de modo que nunca (ou raramente) há um momento de pausa.

O tempo do pulsar (e sua constância) levam a uma sensação de que presenciamos um sonho, a construção de um tempo/espaço não real. E o movimento incessante cria a ideia de que os bailarinos dançam como que levados por uma força maior que seus desejos em se mexer, o que faz pensar que estão todos imersos nessa ambiente, que pela lentidão parece pesar. Há uma realidade que transcende, que se sobrepõe aos bailarinos e os impulsiona ao movimento, que entram em ação não por vontade própria, mas levados por uma “roda viva” concretizada pelo pulsar.

Diante dessas opções coreográficas, é curiosa a escolha de um figurino e cenografia que aponta para a aparente identificação dos bailarinos como moradores de rua, ainda que não de uma forma real (como a movimentação). As roupas não parecem surradas e os corpos não buscam uma mímese de figuras assim, se caracterizando mais por uma fluidez, uma ausência de força, mesmo quando desempenham ações complexas. Os objetos utilizados, como um colchão inflável e cadeiras, poderiam ser itens abandonados, mas também não se apresentam gastos. A luz, numa concepção que brinca com claro/escuro, estiliza e valoriza essas figuras.

Assim, o compromisso de traZ-humante não é com a realidade, mas com o que a partir dela se pode construir, mesmo mostrando figuras de uma dura realidade. No início, os bailarinos se movimentam pelas laterais do palco, desenhando uma trajetória quadrada, em que a interrupção de um implica na continuidade do(s) outro(s). É um momento como que uma apresentação dessas figuras e seu cotidiano sem pausa, como sonâmbulos sempre caminhando para algum lugar.

E dentre os momentos do trabalho, pode-se destacar o jogo - que se repete em boa parte do espetáculo - dos bailarinos, a partir de pequena pausas (quase suspensões do tempo pelo modo como elas se dão) criarem imagens estáticas (“quadros”) com a composição dos objetos que dispõem. E eles passam a reorganizar estes objetos para compor diferentes “quadros”, seguidamente. Cada pausa (que não interfere no pulso) um novo “quadro”. E uma pequena sequência deles forma uma sutil narrativa, que logo se transforma em outra. Cada curta narrativa tem o protagonismo de um dos bailarinos, enquanto os demais manipulam os objetos.

Se a realidade não é uma preocupação de traZ-humante, neste jogo vivido pelos bailarinos se constrói um outro ambiente a partir da irrealidade-sonho em que viviam. Cria-se um segundo grau de irrealidade, pautada especialmente pelo jogo narrativo  dos "quadros", o que pode ser visto, ainda que de forma inconclusiva, como uma alusão à realidade dos moradores de rua, com suas regras próprias e tempo singular.

Mas não se pense que o trabalho, apesar de alguma estilização, se apresenta ingênuo. As relações entre as figuras que dançam levam a momentos crus de violência, sexo, exclusão e reinserção dos integrantes do grupo que dança. E este é outro tema presente no espetáculo: o grupo, este como espaço de sobrevivência. Um grupo que segue o mesmo pulsar. O jogo de criação dos “quadros” acontece no grupo e apenas existe pela presença dele. A ligação entre os bailarinos mantém a movimentação e o pulso por todo o trabalho. E se em alguns momentos eles brigam e se distanciam, estas separações não se dão de forma definitiva, como, por exemplo, na cena final, em que uma das figuras, mesmo sofrendo agressão, busca voltar ao grupo. O pulsar construído por todos cria uma conexão. É um coletivo que dança uma ideia de coletividade, a ponto de não entender sobreviver individualmente. E se estão tão juntos, constroem algo maior que eles, ainda que com isso percam uma ideia de identidade. Enfim, paradoxalmente, os bailarinos juntos criam uma dança, mas esta se impõe sobre eles, não os permitindo escapar.

 

Ficha Técnica

Direção Geral: Marjorie Quast

Direção Artística: Inês Amaral

Direção Coreográfica: Omar Carrum (Membro do Sistema Nacional de Criadores de Arte Fonca 2014-2016) e Vladimir Rodriguez

Intérpretes: Dewson Santos, Glaydson Oliveira, Luciana Lanza, Pedro Lobo e Sara Marchezini.

Adereços Cênicos: Camaleão Grupo de Dança.

Edição e Finalização de Trilha: Omar Carrum e Vladimir Rodriguez

Figurino: Omar Carrum, Vladimir Rodriguez/Camaleão

Direção de Produção: Jacqueline de Castro/Lazuli Cultura

Assistente de Produção: Luciana Lanza

Assistencia de Execução: Cyntia Reyder

Desenho de Luz: Omar Carrum, Vladimir Rodriguez e Rafael França

Produção e Realização: Núcleo Artístico e Camaleão Grupo de Dança

Patrocínio: Instituto Unimed BH, San Diego Suites Lourdes, Niagara Flat, San Diego Mid, Aeroporto Pampulha, Prêmio Cena Minas.

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