Por George Holanda
24/09/2017
Alegria de Náufragos, do Grupo Ser Tão Teatro (PB), dirigido por César Ferrario (do Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare/RN) e Giordano Castro (do Grupo Magiluth/PE), é um espetáculo sobre teatro. Ele conta a história de Nicolai Stepianovitch de Tal, um emérito professor universitário, cuja personagem, assim como todas as demais, é alternada pelos três atores da montagem, Rafael Guedes, Cely Farias e Thardelly Lima, que ainda fazem a si mesmos na peça.
Com um cenário que possui um criativo e funcional praticável, com laterais de lousa de sala de aula e gavetas onde se guardam diversos elementos, além de bancos e um cabideiro (para os figurinos), se constroem os vários ambientes da história desse professor, um intelectual que enfrenta uma crise existencial no fim da sua vida. Seu sofrimento o faz não se sentir ligado às pessoas, adotando uma postura distante diante da sua esposa, filha e colegas de trabalho, presenciando a fala destes como um espectador apático. Todo o seu conhecimento parece um peso sobre seus ombros, como mostra a cena (que se repete algumas vezes) em que os atores colocam medalha, beca e uma imensa diversidade de objetos sobre aquele.
Se o verborrágico prólogo desempenhado pelos atores pode fazer pensar que o trabalho adota uma postura racional, típica de figuras como Nicolai, o figurino de pijama e o tom cômico não sustentam tal compreensão. E as teorias mencionadas nesta explanação concluem que nada seria real, além da subjetividade, o que veremos servir de justificativa para o teatro defendido pelo grupo.
Nicolai Stepianovitch de Tal indica uma origem russa, em menção à literatura desse país que investigou profundas questões humanas, ainda que o “de Tal” aponte para um deboche da figura. Conhecemos o professor já em crise, que vai se revelando numa incapacidade de gozar a vida. A hipótese de se criar uma identificação com ele é logo afastada pelo trabalho, que opta pelo escárnio da figura. Se a crise poderia levá-lo a ver a vida com outros olhos, sem seriedade, mas com uma sensibilidade singular, logo se percebe que aquela é apenas sofrimento e em nada o ajuda. Nicolai é um homem morto, por assim dizer. Pois ele não mais sente, preso a uma racionalidade sufocante e que a essa altura da vida se volta contra si, como um veneno, já que ele esquece das coisas e não mais sabe denominá-las corretamente, isolando-o ainda mais. O que ele percebe é que tudo que construiu está perdido, pois sua mente não mais o acompanha, de modo que passa a definhar e a transformar-se numa figura vazia. E é esta sensação que abala a lógica de uma vida inteira.
Nicolai tem como contraponto a figura de Kátia, sua protegida, que ao contrário dele opta por viver, aventurar-se. Ela abandona tudo, vai para a Crimeia e lá passa a fazer teatro, no que investe todos os seus bens. E se a falência financeira a atinge, não significa que a mesma desiste da vida. É no fazer que ela encontra sua energia. O diálogo, presencial ou por cartas entre essas duas personagens, pontua toda a dramaturgia, construindo a oposição entre ambas. Não à toa a escolha de Kátia é pelo teatro. E aí entramos no ponto essencial do trabalho. Pois não apenas Kátia faz esse opção, mas o próprio espetáculo se apóia nessa ideia. Se Nicolai não opta por viver. E o viver aqui está ligado à arte. Alegria dos Náufragos passa a rejeitar Nicolai e defender o teatro, pelo uso de metalinguagem.
O personagem vai se tornando alvo de achincalhamento. Sua morosidade e impotência vão sendo ridicularizadas pela encenação, não sem uma dose de ironia. A lentidão de Nicolai se contrapõe à agilidade dos atores. E chega a ser impressionante a velocidade e sintonia com que os três atores constroem todo o trabalho. Seus corpos preenchem todo o espaço não ocupado pelo pequeno cenário. E quanto mais cerebral e obsoleto se torna Nicolai, mais divertida se torna a encenação e enérgicos os atores. A ponto de no auge da irreverência do trabalho o professor passar a existir apenas como um objeto imóvel, representado pelo cabideiro. As piadas extrapolam a história de Nicolai e vão fazendo referência aos próprios atores e ao teatro, seja de famosas montagens, como a de Vau da Sarapalha, do Grupo Piollin (PB), seja de atores locais, com menção ao nome de vários deles e ao uso da foto de um dos diretores no cenário. O trabalho entra num processo em que Nicolai vai dando lugar ao próprio Ser Tão.
Se o teatro vai se contrapondo a Nicolai, diegeticamente, pela figura de Kátia, também se dá fora dessa esfera pelos ataques que os próprios atores passam a realizar contra Nicolai, como quando, por exemplo, leiloam a personagem. A vitalidade e energia dos atores devoram Nicolai. E o deboche ao pensamento em prol do sentimento chega a tal ponto que se propõe fazer uma palestra sobre qualquer tema lançado pela plateia. Se o extremo atinge Nicolai também atinge a euforia dos atores. Quanto mais Nicolai esquece, mais os atores levantam infinitas referências, de Tchekov em A Gaivota, passando por figuras famosas da música até a sites na internet. Quanto mais Nicolai é apático, mais os atores fazem piadas e gags das mais diversas.
O trabalho é uma defesa enfática a um tipo de teatro. Um dos tipos. O teatro que os atores do Ser Tão e seus diretores vivem. Irreverente, popular, comunicativo e divertido. E não lento, racionalista e inacessível como Nicolai. O teatro vivido pelo grupo e em grupo. E por isso o trabalho tem tanta vida.
Ficha Técnica
Direção: César Ferrario e Giordano Castro
Texto: César Ferrario, Giordano Castro e Ser Tão Teatro
Elenco: Rafael Guedes, Cely Farias e Thardelly Lima
Direção Musical: Marco França
Cenário: Maria Botelho
Iluminação: Polly Barros
Figurinos: Vilmara Georgina
Produção: José Hilton Souza