Por Diogo Spinelli
24/09/2017
Um corpo. Um pedaço de um corpo. Um pedaço de um corpo humano. Um pedaço de um corpo humano do gênero feminino. Um órgão de um corpo humano do gênero feminino. Um órgão interno de um corpo humano do gênero feminino. Um útero.
É precisamente aí que nos localizamos no início de Tratados de mim mesma na infertilidade, nova criação da Sociedade T, que teve sua estreia no último sábado durante a quinta edição do Festival O Mundo Inteiro É Um Palco e que marca também a primeira dramaturgia e encenação de Heloísa Sousa.
Ou, pelo menos, esta foi a leitura que tive ao entrar em contato com aquele ambiente quase completamente às escuras. Um ambiente no qual nos é permitido ver pouco mais do que os corpos seminus dos quatro intérpretes ao centro da vermelha área cênica, coroada por uma grande estrutura disforme suspensa em seu centro. Ao fundo, a sonoplastia que remete à sons corporais internos reforça a ideia de estarmos observando a vida interior de uma mulher – não necessariamente no sentido psicológico, mas, antes disso, em sua biologia.
Não. Não foi precisamente nesse momento que tive a certeza de que estávamos dentro de seu útero. Foi um pouco mais adiante. Na verdade, pouco se pode falar sobre certezas quanto à obra, já que esta deixa a cada espectador a tarefa de construir suas próprias leituras a partir das imagens que vê e dos textos que ouve. Mas sim, pelo menos eu, estava dentro de seu útero. Devida e simbolicamente involucrados, eu e meus companheiros – assim como aqueles do segundo grupo de exploradores, que puderam examinar de mais perto o ambiente com suas lanternas – estávamos preservados da possibilidade de fertilizar aquele corpo que parece optar por não ser fecundado.
Sim. Foi durante a primeira sequência da obra que descobri que estava em seu útero. O percurso que percorremos no espetáculo, e que de certa forma vai do corporal ao espiritual, não poderia iniciar de outro modo que não pelo sexo. Imagens audiovisuais com alto teor erótico projetam-se em ambas as paredes laterais do ambiente – único momento em que a encenação se utiliza de tal recurso, sugerindo a ideia de que tais imagens se passam no mundo externo ao qual estamos e ao qual não temos acesso – enquanto os intérpretes, embrionariamente, revezam-se na dança de erguer uma pequena árvore-ovário. Tanto eles quanto a árvore são possibilidades de vida, que, não fertilizadas, não chegarão a nascer.
Ainda assim os embriões desenvolvem-se. Adquirem personalidades e vestimentas características que os diferenciam ao ponto de reproduzirem, dentro desse ambiente, algo que ainda não viveram e nem terão a chance de viver por si próprios, mas que talvez carreguem dentro de si como parte daquela mulher da qual ao mesmo tempo pertencem e são parte. Apesar de únicos, todos são possíveis facetas de um mesmo organismo e de um mesmo indivíduo mulher. Enquanto assisto à obra, me pego refletindo sobre a loucura que é pensar que mais do que uma simples transmissão genética, diferentemente do que ocorre com os espermatozoides de nossos pais, todos nós fomos partes de nossas mães e absorvemos suas experiências corporais desde o dia de seus nascimentos. O quanto de experiência materna acumulada carregamos conosco antes mesmo de nascermos?
Não. Talvez não estejamos em seu útero. Mas sim em seus olhos que registram as relações e ações destas quatro figuras que interagem ora em formato coral, ora com certo protagonismo e que por vezes se utilizam de pequenos objetos para criarem imagens esteticamente potentes e passíveis de múltiplas interpretações. A cuidadosa direção de arte do espetáculo privilegia o público frontal, ainda que parte dos espectadores esteja acomodada nas duas laterais da área cênica, e cuja interação com os intérpretes e com o espaço, após o momento inicial, não se desenvolve a ponto de estabelecer uma diferença significativa entre os dois públicos. Do mesmo modo, apesar do grande impacto visual inicial que gera, a estrutura cenográfica central aos poucos perde sua potência ao não sofrer nenhuma interferência ou menção por parte dos intérpretes ou da cena.
Não. Talvez estejamos em sua garganta. Em suas palavras que criam pequenos manifestos – tratados sobre ela mesma – numa dramaturgia textual muitas vezes cifrada, mas que ganha potência nos momentos em que o discurso proferido encerra uma ideia de forma mais assertiva, como no momento em que diferentes tipos de “credo” são proferidos em sequência.
Ou talvez estejamos em seu coração ou em suas veias, ou em seu sangue, ou nesse vermelho que escapa pelas unhas, e que pulsa, e que gera fluxos de movimentos. Ou talvez estejamos em sua alma que entra em êxtase ao som da Lacrimosa de Mozart. Ou talvez, estejamos em todo o seu corpo, que por fim acaba por rejeitar suas partes mais masculinas para abraçar a si mesma.
Esse corpo que, sozinho, ri.
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Ficha Técnica:
Direção: Heloísa Sousa
Texto: Heloísa Sousa
Elenco: Mariana Batista; Moisés Ferreira; Pablo Vieira; Rozeane Oliveira
Direção Musical: Gabriel Souto
Direção de Arte: Mathieu Duvignaud
Iluminação: Priscila Araújo
Figurinos: Heloísa Sousa
Produção: Arlindo Bezerra