Por Diogo Spinelli
27/09/2017
A primeira ação de Elze Maria Barroso em seu solo Cartas Para A Alemanha, apresentado na Mostra Universitária do Festival O mundo inteiro é um palco – Ano V, é pedir ajuda. Na rua, cercada por sacos plásticos transparentes e cheios de água, bem como por dois baldes igualmente transparentes e repletos com o líquido, a intérprete nos pede que a avisemos quando pode começar, pois, sem óculos, não consegue enxergar bem devido à sua miopia. É através dessa incapacidade de esconder suas fragilidades (bem como as da própria obra e de seu processo de criação) que Elze – tão transparente quanto os baldes e sacos plásticos que a cercam – estabelece uma relação de intimidade com o público.
Assim, situações mais estruturadas dramaturgicamente – como quando Elze pede que compartilhemos o peso de transportar os sacos plásticos até a área cênica, nos convida a perdermos juntos os nossos tempos ou compartilha a impossibilidade de classificar a obra que ela mesma criou (teatro pós-dramático, performance, instalação, instauração, não-teatro, ou terapia?) – mesclam-se com comentários espontâneos – como quando ela sinaliza o fato de quase não conseguir achar espaço para escrever um determinado dado na parede de fundo do espaço cênico, ou revela a dificuldade de trabalhar com um aparelho de som emprestado no momento em que a música que deveria entrar em determinado instante, não entra – na conformação de um mesmo exercício de exposição sincera.
Ainda na rua, Elze introduz de forma bastante sutil o primeiro episódio sobre sua história de amor com um alemão que conheceu no carnaval carioca de 2003, e com quem manteve um relacionamento à distância – relacionamento esse que irá motivar toda a obra. Seguindo para o espaço cênico, encontramos uma instalação na qual se repetem os sacos plásticos e baldes avistados na rua, somados a garrafas de vinho amontoadas que também contêm água. No decorrer da obra, muitos dos baldes, garrafas e sacos plásticos terão seus conteúdos esvaziados, fazendo com que por vezes a iluminação gere imagens refletidas da intérprete no espelho d’água que se forma no chão inundado, bem como outros efeitos decorrentes da relação entre a luz, a transparência dos materiais e a água, e que, potentes, podem ainda ser melhor aproveitados pela encenação. A parede preta ao fundo do espaço cênico aos poucos vai sendo preenchida por um amontoado caótico de fatos, datas e informações aleatórias sobre essa história de amor desde seu início até o seu fim.
No canto esquerdo desta parede, um cartaz parece possuir todas as partes/cenas/conteúdos que a obra pode conter: como a memória que se modifica a cada dia, melhorando ou piorando – mas, sem dúvidas, transformando – os fatos, a obra aparenta (des)organizar-se a partir de uma lógica hipertextual, na qual Elze acessa diferentes pontos dos treze [na verdade, catorze] anos que separam aquele primeiro carnaval e a data da apresentação da obra. Como se travasse um diálogo com o público ou consigo mesma, na qual um assunto puxa o outro, a dramaturgia segue uma espécie de fluxo mental na qual os assuntos não necessariamente se concluem, numa espécie de quebra-cabeças do qual conseguimos vislumbrar a imagem toda, mesmo que muitas de suas peças estejam ausentes. Apesar de interessante, essa (des)estrutura faz com que a obra possa se esgarçar, dispersando a atenção do público em alguns momentos, e não necessariamente percorra uma linha narrativa que vá em direção a um ápice.
Entre músicas, cidades visitadas e referências cinematográficas da relação vivida por ela e seu namorado alemão, Elze nos conduz por suas lembranças, nos revelando aspectos de sua intimidade, mas não nos permitindo um real acesso à narrativa sobre os ocorridos. Nessa malha de memórias que passam mais pelo sensorial associado ao afetivo do que à objetividade dos fatos, a volta constante ao momento em que os dois se conheceram faz com que esse seja o momento do qual nos é possível ter uma ideia mais clara – mesmo que essa se modifique a cada vez que novas informações sobre esse dia nos são contadas.
Pelos elementos cênicos que manipula e pela temática que aborda, Cartas Para A Alemanha poderia resultar em uma estereotipada espécie de ritual de superação. Porém, a obra desvia desse caminho, sobretudo, pelo viés irônico que Elze adota ao debochar humoristicamente de si mesma, de sua história de amor, de sua dor, da própria obra e de seu processo de criação. Quando isso ocorre, nos sentimos mais íntimos dela e nos identificamos com sua história, havendo uma maior empatia e cumplicidade entre a intérprete e os espectadores do que, por exemplo, nos momentos em que a obra possui a intenção de atingir nuances mais dramáticas.
Mais do que quando tenta compartilhar a experiência de uma dor da qual, verdadeiramente, não partilhamos, é através da evidenciação do amor envolvido nas insignificâncias íntimas e cotidianas de qualquer relação – como o tocar os cílios do outro com a ponta dos dedos –, ou no discurso que reconhece a banalidade e a comicidade de nossas existências que a intérprete efetiva sua comunhão com o público.
A beleza de Cartas Para A Alemanha reside aí: na capacidade de Elze em nos mostrar que, por mais sofrimento que tenhamos tido, sempre é possível continuar a rir de nós mesmos.
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Ficha Técnica:
Direção, atuação, texto, direção musical, cenário, figurinos e produção: Elze Marie Barroso.
Assistência de direção e iluminação: Franco Fonseca.