Por Diogo Spinelli
27/09/2017
Minha relação com a dramaturgia de Arístides Vargas, fundador do grupo equatoriano Malayerba, nasceu em 2006, quando me deparei com A idade da ameixa, de sua autoria, ainda no meu segundo ano na graduação no Departamento de Artes Cênicas da Universidade de São Paulo. Na época, cursava a disciplina de Direção I e necessitava realizar um experimento cênico. Foi nesse processo que A idade da ameixa se tornou minha primeira direção, que só não continuou a se apresentar para além dos muros da Universidade devido a problemas junto a um grupo que à época detinha os direitos exclusivos de montagem do texto no Brasil – uma questão mesquinha de reserva de mercado que não faz sentido algum quando tratamos de teatro, pois quantas montagens tiverem de um mesmo texto, tantas serão distintas umas das outras.
Vencido o prazo de exclusividade sobre os direitos, em 2014 encenei uma nova montagem de A idade da ameixa, e com esse trabalho tive a oportunidade de participar naquele mesmo ano da segunda edição do Festival O mundo inteiro é um palco. Mas antes disso, em 2009, quando me aproximei dos Clowns de Shakespeare em sua temporada paulistana de O capitão e a sereia, fui eu quem reapresentou ao grupo o texto de Nuestra Señora de las Nubes (o grupo havia visto a montagem em 2003 no FIT Rio Preto), que seria encenado pelo grupo também em 2014, sob o nome de Nuestra Senhora de las Nuvens.
Esse preâmbulo todo talvez sirva para situar minha relação pessoal em poder acompanhar a apresentação da montagem original de Nuestra Señora de las Nubes, tendo Arístides Vargas e Charo Francés – sua companheira e também fundadora do Malayerba – em cena, no Barracão Clowns, durante a edição de número cinco d’O mundo inteiro é um palco, e demarcar o quanto ela se emaranha com minha própria relação com o fazer teatral. Sendo o exercício da crítica, tal qual a entendemos, um diálogo com a obra a partir de um ponto de vista específico e não totalizante, talvez seja importante fazer essa contextualização antes de entrarmos de vez na análise do espetáculo.
Na montagem do Malayerba, o palco quase completamente nu, preenchido somente por alguns desenhos a giz no chão, deixa o espaço livre para que a obra construa-se tendo como base a dramaturgia e o jogo entre os dois atores. Portando apenas alguns poucos objetos simples – o suficiente para preencher duas malas – eles dão vida tanto a dois exilados quanto às personagens que povoam suas memórias sobre o povoado de Nuestra Señora de las Nubes, do qual saíram há quase quarenta anos e começam a não mais recordar.
Se em alguns aspectos, sobretudo os técnicos, a encenação deixa transparecer a idade da montagem – a obra teve sua estreia nos anos 2000 – é impressionante (e um pouco perturbador) perceber a atualidade de sua dramaturgia frente ao contexto da América Latina nos dias de hoje, na qual vozes do passado parecem ecoar cada vez com mais força. Se a dramaturgia brasileira ignorou por um tempo considerável a temática de nossa ditatura civil-militar e seus desdobramentos, esse tema sempre permeou grande parte da dramaturgia realizada em nossos países vizinhos, sendo também um dos pilares da dramaturgia de Arístides Vargas.
Em sua escrita, Arístides encontra um certo equilíbrio entre ativismo, lirismo, humor e poesia, fazendo com que os textos sejam a um só tempo poéticos e políticos. Em Nuestra Señora de las Nubes a comicidade, mais explorada no primeiro momento da obra, vai pouco a pouco desaparecendo, dando espaço para uma espécie de melancolia desesperançada que se aprofunda ainda mais nas últimas cenas do espetáculo.
Há sempre uma atmosfera de sonho ou de loucura nas figuras que permeiam as memórias dos dois exilados – bem como neles próprios – que fazem com que exista um certo deslocamento da realidade em seus discursos, gerando uma vinculação entre a obra e o realismo fantástico latino-americano. Aliás, mesmo que se trate de um povoado fictício, ao demarcar Nuestra Señora de las Nubes como pertencente à América Latina, fica evidente nossa relação de irmandade continental. Apesar das diferenças culturais entre os países latino-americanos, não é difícil imaginar Nuestra Señora de las Nubes como metáfora para o próprio Brasil – no qual os corruptos denunciam os corruptos e fica tudo bem porque eles sabem do que estão falando, e no qual perde-se a dignidade, mas não a raiz religiosa (para citar apenas dois exemplos contidos no texto).
Além da dramaturgia, talvez o aspecto mais impressionante e encantador de Nuestra Señora de las Nubes seja a oportunidade de poder ver à Charo e Arístides jogando e se divertindo em cena. Há uma beleza muito peculiar em observar artistas com mais idade e experiência (não só de teatro, mas de vida) colocando-se em estado de jogo, e permitindo-se gozar de seu ofício. Se os personagens da obra caminham rumo à descrença, assistir aos dois artistas renova as esperanças na crença de permanecer fazendo teatro enquanto opção política, artística e de vida. Sobretudo com relação à Charo, que com uma justa medida, brinca ao representar as mais diferentes figuras, com vivacidade e prazer evidentes.
Esse jogo entre os atores implica inclusive em uma grande improvisação textual (o que dificultou imensamente a operação de legendas da apresentação, mas que espero não tenha prejudicado a fruição dos espectadores menos acostumados ao idioma espanhol), mostrando o quanto o coletivo continua vivo, pulsante e permitindo-se reavaliar a própria obra a cada apresentação.
Finalizo esse texto parafraseando uma frase que Daniela Beny postou em seu facebook ontem, após a apresentação e da qual tive a liberdade de me apropriar: No fim, todos somos um pouco exilados de Nuestra Señora de las Nubes. E no fim, todo teatro de grupo tem um pouco do Grupo de Teatro Malayerba.
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Direção: Arístides Vargas e María del Rosario Francés
Texto: Arístides Vargas
Elenco: María del Rosario Francés e Arístides Vargas
Direção Musical: Alberto Caleris
Direção de Atores: María del Rosario Francés
Cenário: Grupo Malayerba
Iluminação: Gerson Guerra
Figurinos: Grupo Malayerba
Produção: Grupo Malayerba
Operação de legendas em português: Geane Santana