Por Heloísa Sousa
01/10/2017
A Gaya Dança Contemporânea realiza a pré-estreia do espetáculo “Basta ter a coragem” durante a quinta edição do Festival “O Mundo Inteiro é um Palco” em Natal. Talvez não seja possível se debruçar sobre alguma obra da Gaya Dança Contemporânea sem observar seus anos de trajetória e importância na formação de artistas da dança, transitando entre abordagens estéticas distintas justificadas pela multiplicidade de conduções nos processos criativos.
A Gaya Dança Contemporânea é um projeto de extensão da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) fundada pelo coreógrafo e professor Edson Claro (1949-2013), um dos grandes artistas-pesquisadores que mobilizou inúmeras iniciativas na universidade. Fundada em 1990, o grupo percorreu uma trajetória de pesquisas e experimentações artísticas em dança contemporânea que convergiram em diálogos com profissionais da dança de reconhecimento nacional como Mário Nascimento, além de ter contribuído com a formação estética de profissionais da cidade como Ana Claudia Albano, Petrúcia Nóbrega, Astrid Sharon, Edeilson Matias entre outros. A intervenção de Edson Claro no contexto artístico-acadêmico da cidade é mais do que a formação deste projeto; além da criação do método dança-educação física apresentado em sua pesquisa de mestrado, Edson Claro ainda coordenou e fundou outros dois projetos de extensão pioneiros na UFRN como a Cia. Roda Viva e a Cia. de Dança dos Meninos, que enfatizavam as singularidades dos corpos e suas potencialidades em dança.
Eu, Heloísa Sousa, ingressei no Departamento de Artes no ano de 2009 e infelizmente não tive a oportunidade de conhecer pessoalmente Edson Claro, seja como artista ou como professor, embora eu tenha sido permeada pelas memórias que este deixou nos corpos que dançaram e na trajetória dos cursos de artes da universidade. Mas, mesmo assim, preciso dedicar parte deste texto crítico a este homem que parece ter enxergado o mundo, o meio acadêmico e a prática artística de um modo semelhante a como eu enxergo hoje e que nos deixou cedo (aos 62 anos de idade), mas que plantou inúmeras sementes nesta cidade. Algumas sementes morreram. Morreram por falta de cuidado. Faltou coragem para fazer resistir o trabalho dessa figura tão admirada e reconhecida no cenário artístico, após seu afastamento profissional.
A Cia. de Dança dos Meninos não existe mais. A Cia. Roda Vida também não, embora tenha mobilizado o surgimento do Gira Dança que permanece ativo na cidade sem vínculos com a instituição acadêmica. A Gaya Dança Contemporânea tenta resistir com esforços insuficientes para fazer permanecer a força artística que o grupo tinha. Com uma grande rotatividade de estudantes e profissionais da dança que por vezes não conseguem estabelecer trajetórias de amadurecimentos, o grupo já convergiu em espetáculos com pesquisas frágeis e abordagens estéticas redundantes que contrariam a contemporaneidade evidenciada em seu próprio nome. Após Edson Claro, houveram ainda duas propostas artísticas que se destacaram do ponto de vista da experimentação de linguagens como "Fragmentos da Hora Absurda" dirigido por Andrea Copeliovitch e “A Possibilidade de Fazer Sombra” dirigido por Maurício Motta, este último cruza suas experiências em dança-teatro com os corpos de jovens estudantes da universidade com silhuetas e repertórios diversos. Depois disso, a Gaya Dança Contemporânea parece ter se perdido nas salas de ensaio do Departamento de Artes, não conseguindo amadurecer suas experimentações e pesquisas, nem propor formações consistentes de estudantes da dança como antes. Em alguma época, quando eu frequentava diariamente o Departamento de Artes por ser discente do local, havia uma sala que homenageava Edson Claro com seu nome. Ao lado dessa sala, existia uma plaquinha amarelada com os nomes dos grupos criados por Edson Claro e que tinham aquele espaço como sede de práticas e estudos. Sempre me entristecia de algum modo, ler aqueles nomes e pensar que aquilo que antes foi um desejo, um projeto, uma proposta se tornou apenas mais um nome. E eu, como uma moça metida, pensava que um dia, se eu tivesse a oportunidade...
Neste sentido, a direção de Hyago Pinheiro com assistência de Cléo Morais na obra “Basta Ter a Coragem” apesar das fragilidades e problemáticas, carrega um esforço e uma necessidade de recuperar a pesquisa sobre a dança contemporânea, uma análise do movimento e experimentação de questões pertinentes a contemporaneidade como a exploração de variações no tempo, a construção de imagens corporais e o cruzamento de experiências pessoais na criação da dramaturgia. É perceptível que há um movimento laboratorial na criação dos movimentos, ações e imagens que compõem as cenas deste espetáculo que buscam variações de formatos, ocupações no espaço e tempos em desenvolvimento. Se aproximando do que percebo ser uma paisagem corporal, quando a montagem [organização] dos corpos no espaço provocam dramaturgias, leituras em camadas, sobreposições e simultaneidades coerentes com nossa potencialidade de recepção hipertextual. Dessa forma, este novo trabalho da Gaya aponta um possível recomeço das pesquisas sobre direção de movimento, embora ainda haja muita – muita – trajetória a ser percorrida nessa retomada.
O espetáculo “Basta ter a coragem” traz o amor como temática norteadora das pesquisas e práticas. No entanto, falar sobre o amor me parece uma tarefa quase impossível devido a grandiosidade desse sentimento que [em sua performatividade] se configura a partir das próprias relações únicas e singulares entre os corpos. E que mesmo falando do amor entre as mesmas pessoas, o fluxo de transformação do ser humano não permite a estagnação desse sentimento, seja enquanto sensação ou enquanto “verdade”. Qualquer tentativa de representar o amor não passará de um clichê vermelho entre tapas e beijos. Daí surge um grande desafio de explorar a poeticidade e estética dessa palavra que nos atravessa continuamente. Por esta razão, enquanto espectadora tenho a percepção de que esta obra não fala sobre o amor, mas sim sobre alguns casos, tensões sexuais, encontros fugidios e iniciais. Falo do lugar de uma mulher que vive há 08 anos com o mesmo companheiro e que no desgaste e reconstrução da forma e vivência do amar [seria isso mesmo?] já não me encontro nas representações que vi em cena.
Existem também outras problemáticas que podem ser discutidas sobre a obra e seu processo de criação como a fragilidade de sentido da presença de algumas canções em cena, apesar da direção musical coerente de Erih Araújo. Essas rimas desgastadas entre amor e dor podem ser repensadas, e esta realidade de sentimentos aparentemente antagônicos podem encontrar outras formas de expressão artística. A dramaturgia, em alguns momentos, constrói situações cômicas que se distanciam e estranham o desenvolvimento da obra – não no sentido épico –, embora haja imagens simples e alargadas que me atraem como a moça parada na cadeira sendo encoberta de mensagens prontas que a tornam quase cega, quase monstruosa.
Sou uma artista [do teatro] que escreve textos críticos [ou tenta] a partir da minha necessidade de dialogar com o outro artista e de organizar meu pensamento e minhas experiências ao encontrar uma obra. Falta em mim alguns conhecimentos técnicos e mais aprofundados na linguagem da dança que me permitam uma análise mais criteriosa das escolhas cênicas, mas ainda assim, me sinto impelida a falar sobre a partir dos meus lugares de referência. E é necessário falar sobre a Gaya Dança Contemporânea, falar sobre o Edson Claro, falar sobre trajetórias, reconhecimentos, contextos e escolhas. Mas, além da necessidade, é preciso ter a coragem.