Por Diogo Spinelli
01/10/2017
Um ator nordestino, de preferência um ator norte-rio-grandense, poderia representar um personagem nordestino?
Essa é a questão inaugural do espetáculo A invenção do Nordeste, trabalho recém estreado pelo Grupo Carmin, responsável por fechar a programação da quinta edição do Festival O Mundo Inteiro É Um Palco na noite do último sábado. Tendo como ponto de partida o livro A invenção do Nordeste e outras artes, do historiador e professor da UFRN Durval Muniz de Albuquerque Jr, a adaptação do grupo Carmin discute cenicamente não apenas a formação histórica de sua região de origem, mas também traz a público uma série de conceitos que ganharam força na sociedade atual (muitos dos quais, inclusive, já se encontram desgastados ou com sentido esvaziado após seu uso excessivo): lugar de fala, empoderamento, protagonismo, representatividade.
Mantendo a linha documental já abordada em seus trabalhos anteriores, mas deixando-a menos evidente, subterrânea à uma situação dramática única que conduz a dramaturgia – a preparação de elenco para um suposto trabalho audiovisual –, o grupo coloca o processo de criação do espetáculo no centro da obra. Dessa forma, a preparação ficcional de elenco realizada pelo diretor (Henrique Fontes) com os atores candidatos à assumirem o papel de nordestino (Mateus Cardoso e Robson Medeiros) parece remeter às próprias questões discutidas pelo coletivo no processo de criação real conduzido por Quitéria Kelly em sua estreia na direção, num jogo de espelhos no qual a obra discute e evidencia seu próprio processo criativo.
Mais do que isso, ao realizar essa sobreposição, a obra entrelaça duas discussões que se interpenetram: uma relativa à criação da identidade nordestina na sociedade brasileira, e a outra à questão da representatividade/representação nas artes (sobretudo nas artes cênicas e audiovisuais). Quem está apto ou autorizado a discursar sobre determinado grupo social, e quem historicamente o fez até agora? Que discursos foram e são produzidos sobre esse grupo no campo das artes e na cultura de massa? Quem poderia melhor representar a esse grupo (nos variados sentidos que “representar” encerra), e com quais objetivos?
Tendo como base essa dupla discussão, e somando-se a ela os procedimentos documentais que epicizam a cena, A invenção do Nordeste estabelece uma relação predominantemente cerebral com o espectador. Ainda assim, a obra não prescinde de uma comunicação imediata com o público, afastando-se do hermetismo ou academicismo nos quais poderia incorrer. Em contraponto, os momentos nos quais há o uso de um humor não tão refinado como possível recurso de aproximação com o público acabam por destoar do restante da obra.
Ao colocar a discussão sobre os estereótipos como um de seus principais eixos organizadores, A invenção do Nordeste não se furta ao risco de jogar com eles, num equilíbrio delicado entre a reprodução/reiteração de clichês e sua crítica. Na tentativa de explicitar o simplismo causado pela imagem estereotipada do nordestino e suas consequências históricas e sociais, a obra não deixa de reforçar outros lugares-comuns, como aqueles relativos, por exemplo, aos cariocas e paulistas. Ainda que os estereótipos de cunho geográfico sejam aqueles que apareçam com mais evidência na obra, outros também se fazem presentes, como aqueles vinculados à relação elenco-direção-produção e aos modos de representação de determinados “gêneros” teatrais. Do mesmo modo, ainda que corresponda à realidade, a resolução adotada para o conflito principal da obra – a escolha entre os dois atores para o papel – é de certa forma previsível, e faz com que se perca parte da complexidade da discussão.
Mesmo que não anunciadamente, A invenção do Nordeste parece dar continuidade a um projeto maior do Grupo Carmin inaugurado por Jacy, e que parte da premissa da relação entre o [teatro] local frente aos contextos nacionais. Desse modo, apesar do revezamento de funções dentro do coletivo, faz sentido a recorrência de determinados elementos similares aos já utilizados nos trabalhos anteriores do grupo – como o uso do recurso audiovisual como importante narrador, comentador e amplificador do que ocorre em cena, o despojamento dos figurinos e do cenário (que de alguma forma remete ao de Jacy, como se tivéssemos apenas mudado o nosso ângulo de visão sobre uma mesma questão) – denotando mais uma busca pela manutenção e aprofundamento de um pensamento estético e procedimental característicos do grupo, do que o estabelecimento de uma ruptura dos mesmos ou de uma demarcação mais evidente da voz autoral de Quitéria Kelly ao assinar a direção da obra.
Ainda assim, a encenação de Quitéria garante a A invenção do Nordeste um aprofundamento na direção de atores, havendo um adensamento do uso da voz e dos corpos dos intérpretes (notadamente de Mateus Cardoso e Robson Medeiros, atores que interpretam atores) como possibilidade de recurso expressivo. Chama atenção também a opção de as intervenções audiovisuais agora serem realizadas pelos próprios atores em cena – que também modificam luzes, e manuseiam refletores e os poucos elementos de cena que compõe a enxuta cenografia; como se ao fazê-lo, fosse reafirmado o conceito de que a criação do Nordeste e da identidade nordestina resultam de uma construção artificial, resultante da manipulação histórica de determinados fatos em determinados contextos por determinados agentes.
Para além do claro posicionamento crítico a um sistema discriminatório no qual ao nordestino [como a qualquer minoria] cabe [literalmente na situação planteada no espetáculo] o papel de coadjuvante de sua própria história contada pela classe dominante, a obra mais problematiza a temática da identidade nordestina do que procurar tirar conclusões sobre a mesma: existe o que seria, afinal, o tipicamente nordestino?
A invenção do Nordeste despreocupa-se da necessidade de indicar respostas. Para questões complexas, talvez a maior potência seja justamente encontrar as perguntas. Uma vez revelado o processo de invenção do Nordeste, o que fazer para reinventá-lo, ou se for preciso, desinventá-lo?
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Ficha Técnica
Direção e figurino: Quitéria Kelly
Elenco: Henrique Fontes, Mateus Cardoso e Robson Medeiros
Assistência de direção, dramaturgia audiovisual e desenho de luz: Pedro Fiuza
Consultoria história e de roteiro: Durval Muniz de Albuquerque Jr
Direção de arte e cenografia: Mathieu Duvignaud
Dramaturgia: Henrique Fontes e Pablo Capistrano
Preparação Corporal: Ana Claudia Albano Viana
Preparação Vocal: Gilmar Bedaque
Produzão executiva: Mariana Hardi
Trilha original: Gabriel Souto
Design Gráfico: Teo Viana
Xilogravura: Erick Lima
Costureira: Kátia Dantas
Cenotécnico: Irapuã Junior
Edição de vídeo: Juliano Barreto
Locução: Daniele Avila Small
Assistência Técnica: Anderson Galdino