Campo Minado: Museu vivo da guerra.

Por Diogo Spinelli
03/03/2018

Segundo David Jackson, um dos veteranos da Guerra das Malvinas (1982), retornar às ilhas é deparar-se com um museu vivo da guerra. Ele faz essa afirmação durante uma das cenas de Campo Minado, espetáculo dirigido pela argentina Lola Arias, no qual além do próprio Jackson estão em cena outros cinco ex-combatentes deste mesmo conflito (sendo três deles argentinos e dois britânicos, como Jackson). Ao entrarmos em contato com suas figuras e seus relatos sobre a guerra, é possível transpor a afirmação de Jackson para a própria obra: assistir à Campo Minado é também presenciar a um museu vivo da guerra. Passados 35 anos, o que resta de uma guerra? O que resta daqueles que restaram?

Após uma sequência inicial na qual conhecemos os seis veteranos em reproduções de suas audições para a realização do espetáculo, a obra organiza-se em capítulos nos quais são apresentadas em ordem cronológica as recordações dos ex-combatentes acerca dos principais eventos da guerra no qual tomaram parte. Acompanhamos suas trajetórias desde os processos de alistamento até os retornos aos seus países, e uma vez findo o conflito, somos dados a conhecer suas posteriores consequências pós-traumáticas.  Essa estrutura linear e quase literária, reforçada pelo constante teor narrativo da dramaturgia, remete de certo modo aos diários preenchidos por cada um dos veteranos durante o processo de criação da obra que, além de serem citados textualmente, aparecem documentalmente em cena através de projeções realizadas ao vivo.

Somados aos diários, outros tipos de materiais documentais como fotos, revistas, cartas e pedaços de uniformes são manipulados em cena e projetados na principal peça que compõe a cenografia: uma espécie de estúdio de gravação branco, cuja disposição cênica faz lembrar ele também a um livro aberto. Ao serem utilizados de variadas formas ao longo da encenação, esses materiais contribuem para, a um só tempo, agregar texturas visuais diversas e contextualizar histórica e socialmente o conteúdo que está sendo narrado em cada um dos relatos. Ainda assim, os principais “documentos” de que dispõe Campo Minado tratam-se justamente dos seis veteranos: não apenas seu passado, mas seu presente (e sua presença); e o fato primordial que reside em, tendo estado em lados opostos das trincheiras de uma mesma guerra no passado, estarem hoje dividindo o mesmo palco.

Propositadamente – como inclusive nos é dado a conhecer em um dos últimos momentos do espetáculo, no qual somos informados de que durante o processo de ensaios não se discutiu a questão da soberania das ilhas – a obra evita aventurar-se a percorrer alguns de seus próprios campos minados. Assim, ela furta-se aos riscos de aprofundar-se ou de trazer à tona dissensos ou conflitos que poderiam desgastar a relação entre os seis veteranos a partir de suas múltiplas perspectivas em relação à disputa pelas Malvinas. Há na dramaturgia e direção de Lola Arias uma clara opção por trazer à cena o que, apesar de suas particularidades, une aqueles seis indivíduos na condição de veteranos de uma mesma guerra, e não o que os diferencia. Se por um lado, essa escolha faz com que a obra produza um discurso esperançoso e conciliatório, por outro, esse discurso parece chegar ao público de forma demasiadamente reconfortante.

Como é possível sair revigorado de um espetáculo que tem como material de base as lembranças de um conflito armado que resultou em quase mil mortos?

A questão é que o museu vivo da guerra de Campo Minado, mais do que somente promover um discurso antibélico – ainda que o faça de forma bastante clara – propõe, na premissa de seu projeto, a materialização de uma experiência real de diálogo e cooperação entre indivíduos pertencentes a grupos sociais que historicamente ocuparam posições antagônicas dentro da situação-limite de uma guerra. E é à concretização desta experiência real de convivência e tolerância – que é maior que a obra em si – que presenciamos quando assistimos a Campo Minado.

Mesmo com o caráter otimista que esta experiência imprime na obra, o espetáculo consegue afastar-se da pieguice, devido ao fato de que somente em poucos os momentos o fardo da guerra emerge na cena de modo a afetar o público por vias sentimentais. Essa relação não sentimentalista em relação à guerra é apontada na obra a partir de duas perspectivas, sendo uma delas o distanciamento temporal que separa o relato do ocorrido. Como diz Lou Armour (outro dos veteranos em cena), essa distância faz com que agora, ao recontar suas lembranças, ele mantenha seus sentimentos sob controle, contando-as como se fossem histórias de outrem. A outra é sugerida por Gabriel Sagastume, quando diz que “Há coisas que ocorreram na guerra que ficaram enterradas nas ilhas”, indicando que nem toda a experiência vivenciada e rememorada pelos veteranos durante o processo de criação estava apta emocionalmente para servir de material ao espetáculo.

No contexto de polarização atual em que nos encontramos, no qual cada vez mais somos impelidos a restringirmos nosso convívio àqueles com os quais nos identificamos ideologicamente, Campo Minado é uma obra que convida a repensar as possibilidades de diálogo com o diferente. O que é possível criarmos juntos a partir do que nos une, e não do que nos separa?

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