[Vênus]

Por Heloísa Sousa
11/03/2018

Talvez você, espectador, se lembre da pequena escultura da Vênus de Willendorf ao encontrar com a artista Clarissa Rêgo em cena, de pé em cima de uma estrutura comprida semelhante a um banco. Provavelmente, muito da nossa percepção a partir da obra “Bloom” seja uma sucessão de lembranças e associações a partir das imagens delineadas, além de testemunhar o corpo da artista se colocando em estados de tensão e de provocação da sua própria imagem, dos conceitos da dança, da recepção do público e do espaço da cena.

Bloom pode significar “florescimento”, na língua inglesa. As imagens corporificadas pela bailarina, juntamente com o formato de seu corpo e o título da obra vão nos levando a um outro lugar de representação do feminino, diferente do padrão disseminado pelos veículos de mídia. A Vênus de Willendorf, pequena escultura de um corpo de mulher com grandes seios e formatos arrendondados, foi feita milhares de anos antes de Cristo e simbolizava a fertilidade em um período onde o feminino ainda indicava prosperidade ao invés de total submissão. No período do Renascimento, também nos deparamos com quadros como “O Nascimento de Vênus” de Sandro Botticelli que traz a imagem da deusa Afrodite ou Vênus (mitologia grega e romana, respectivamente) com curvas acentuadas e volumes que configuravam outro ideal de beleza.

Em “Bloom”, contemplamos o corpo desnudo da artista (Vênus) por um tempo que se estende através de movimentos lentos e repetitivos que configuram algumas posturas sociais reconhecidas. Neste momento, o desenho de luz da obra evidencia os volumes em uma variação de tons alaranjados e passa a dançar junto com o corpo. Com o tempo, a artista vai explorando a expressividade de várias partes do seu corpo, com uma presença e tensão muscular visível. O suor escorre. O tempo se estende tanto que uma simples gota de água pelo corpo ganha sua própria presença, dança também. E tudo isso vai se diluindo até que o corpo escorrega sobre a grande estrutura onde está instalado.

A obra também lembra a instalação coreográfica “Comer o Coração” (2004) de Vera Mantero e o texto escrito pelo crítico Alexandre Melo, em muitos pontos, nos faz pensar sobre as questões erguidas em “Bloom”. Questões relacionadas diretamente à linguagem da dança e sua performatividade. O trabalho de Clarissa Rêgo transgride as fronteiras da linguagem artística, a nossa relação com o tempo, o espaço e o corpo. É experimental porque não busca romper com formas de pensamento sobre a dança, mas sim ampliar nossa recepção sobre a mesma. E neste sentido, há sim um vocabulário técnico e conceitual que vai sendo manipulado pela artista e que exige um repertório prévio que permita ao espectador dialogar com esta dança. Reduzir a obra de Clarissa a uma mera experiência sensorial talvez seja superficial, há uma comunicação objetiva e intencional por parte da artista, que atinge o outro na medida em que este compreende alguns princípios de sua mídia, a própria dança.

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