Por Heloísa Sousa
13/03/2018
Nena Inoue esteve no palco da Casa da Ribeira com o espetáculo “Para Não Morrer”, integrando a programação da primeira edição do Festival Internacional Casa da Ribeira. Depois de quarenta anos de trajetória nas artes cênicas, a atriz paranaense estreia seu primeiro solo com direção de outra grande artista brasileira, Babaya Morais. Com dramaturgia de Francisco Mallmann, baseada na obra “Mulheres” do escritor uruguaio Eduardo Galeano, Nena corporifica uma figura feminina de forte presença que se põe a falar continuamente sobre outras mulheres e suas trajetórias.
A imagem é potente, impactante e quase estática; há tanto a dizer que não se precisa de muitas transformações visuais. Nena está sentada em um grande amontoado de tecido com manchas vermelhas, algumas garrafas de vidro com água dispostos, seu corpo vestido apenas de longos cabelos pretos e volumosos, partes do corpo contraídas e enrijecidas, pouco movimento, muita densidade. E então ela fala, fala, fala, respira, esquece, fala mais um muito, fala e para. Nessa obra, o drama é a fala, o que se tem a dizer.
E ela, como uma grande contadora de histórias – ainda lembramos o que isso significa? – traz momentos de opressão, de dores e descobertas vividos por inúmeras mulheres. Esse é também o desejo da atriz Nena Inoue com a obra em questão. Contar.
Essa figura instalada no espaço lembra muitas figuras femininas trazidas para a cena pelo dramaturgo irlandês Samuel Beckett. E “Para Não Morrer” ao seu modo, também é absurdo. Como algumas personagens de Beckett, a contadora de Nena pouco se move, tem seu corpo fundido no espaço e usa a palavra em um modo verborrágico que apela aos discursos, aos desconfortos, às esperas e às sonoridades. Nesse momento, lembro diretamente da personagem-boca na dramaturgia de “Not I” desse mesmo escritor. Essa obra do Teatro do Absurdo traz ênfase para o discurso de um feminino cuja história não nos é acessível, mas que fala descontroladamente sobre aquilo que sabe, que viu e que sentiu. Para além da conexão com o formato e o discurso entre a peça de Beckett e a de Nena, alguns momentos do texto – como as pausas – também coincidem em relação a sua função na construção do ritmo dos textos.
São essas breves pausas unidas a escolha de uma linguagem coloquial – acessível – como de quem está conversando e compartilhando memórias com o espectador, que tornam a obra mais assimilável, contribuindo com o entendimento claro das histórias contadas. Essa compreensão gera empatia, identificação e provoca sensação de proximidade entre o público e a artista; auxiliando na crença desse espectador em todas as estruturas fictícias criadas por Nena – principalmente no que diz respeito a sua corporalidade.
A imagem – hibridismo entre corpo, figurino e cenário – é uma instalação com certa potência mítica e poderia ser vista em uma galeria. O fato de estar sendo vista em um palco traz ao espectador outra possibilidade de uso de elementos comuns ao teatro, além de provocar as percepções através de uma fusão de linguagens artísticas na mesma obra. Embora o olhar se adapte a imagem após certo tempo, pela ausência de transformações da mesma, esta sendo uma escolha consciente da artista torna-se uma experimentação da contemplação.
Na ocasião da segunda apresentação na Casa da Ribeira, foi aberta a possibilidade de um diálogo entre o público e a artista após o espetáculo. Nesse momento, é interessante observar as percepções dos espectadores, seus pensamentos prévios a obra, as questões que o inquietam e como eles lidam com a experiência cênica em si. No caso dessa obra de Nena Inoue foi notável o quanto o público se conectou com o que viu/ouviu – talvez pelo discurso feminista/feminino, talvez pelo formato restaurado da contação de histórias, talvez por tudo isso e outras coisas – ao ponto em que as poucas perguntas sobre a obra/processo foram ofuscadas por muita necessidade de compartilhar com a artista o que foi percebido, pensado e lembrado durante aquele momento. Nessa hora, tudo se inverte, e Nena passa a ser ouvinte de histórias do público. Até então, eu considerava os diálogos feitos após a apresentação sobre a obra em questão – em qualquer tipo de evento – um pouco incoerente com o fato de que a recepção necessita de certo tempo para ser “digerida” pelo corpo, ou ainda pelo fato de que com a recorrência de artistas apresentando para artistas, acabávamos nos deparando com perguntas estranhas e genéricas como “fale sobre o processo” ou “o que significa este elemento em cena?”. No entanto, hoje penso que talvez, por mais estranho que possa se configurar, esses são os únicos momentos de troca entre o artista e o público que nos permite repensar ou afirmar nossas escolhas.
“Para Não Morrer” aborda o feminino, o feminismo, a existência. Da mulher foi retirado o lugar da fala, o direito a expressão; e isso foi um longo processo de silenciamento que tem gerado um árduo processo de reversão. Após tantos séculos sem ouvir o que mulheres têm a dizer ou como elas desejam se posicionar, Nena fala continuamente em cena e a gente não se cansa disso. As histórias contadas pela atriz são baseadas nos relatos de Galeano e adaptadas ao teatro por outro homem, o dramaturgo Francisco Mallmann. Homens que falam e escrevem sobre mulheres, em uma abordagem ética, não é um problema; no entanto, o fato de que reconhecemos/conhecemos muito mais homens literatas do que mulheres, sim. De certa forma, nossas histórias passam muito tempo nas bocas/mãos de outros homens. Ao escolher encenar algo inspirado no Galeano e da forma como se apresentou, Nena e Babaya desviam esse paradigma e trazem para si o direito de reapresentar essas mulheres ao mundo, usando outra linguagem e outra voz, feminina.