Por Heloísa Sousa
20/03/2024
Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.
"Na verdade, cada vez que um pano de boca se abre neste país, cada vez que um refletor se acende, soam trombetas no céu — trata-se de uma vitória da cultura, qualquer que seja o espetáculo."
Oduvaldo Vianna Filho
Será?
(emoji de carinha feliz com uma lágrima escorrendo)
(emoji de carinha feliz se derretendo)
Esse texto também poderia carregar o subtítulo “Em terra de cego, quem tem olho é rei” e estará carregado de afetividades estranhas entre o deboche e a indignação, pois sinto não haver outro modo de tratar sobre o atual cenário da produção teatral na cidade de Natal.
No dia 08 de março de 2024, o também editor e crítico deste site, Diogo Spinelli, publicou o texto “Toda estreia [potiguar] deve ser celebrada” onde escreve um panorama que elenca os fatos recentes associados à produção teatral natalense como o fechamento de espaços culturais, a inexistência atual de festivais de teatro e a pouca mobilização para o surgimento de novos grupos, além das questões relacionadas aos financiamentos públicos e privados também marcados pela discrepância em relação aos investimentos direcionados ao setor de criação no audiovisual. O autor escreve seu texto mobilizado pela primeira estreia em teatro do ano de 2024 na capital potiguar, realizada por um grupo jovem que inaugurou também seu repertório neste ano. Se o texto de Spinelli contribui para uma breve historicização deste cenário, a escolha do título traz um subtexto em si que também precisa ser debatido, pois carrega utopia e perigo simultaneamente.
Diante de um cenário de precarização da produção em teatro, dança e performance (artes da cena) na cidade de Natal, a realização de estreias aos moldes de guerrilha (sem investimentos públicos ou privados, sem perspectivas de sobrevivência e sem possibilidades mínimas de subsistência da prática artística e da vida profissional como artista) e ainda como acontecimentos isolados no tempo, finda por construir uma relação delicada com o público. Como não há cenário e outras obras que possam pôr aquela estreia em perspectiva, absolutamente qualquer forma artística e discurso enunciado acaba sendo borrado pela emotividade em assistir a um respiro quase sacrificial da cena natalense.
Em 2022, o espetáculo de dança "Corpos Turvos" do CIDA trouxe ao cidadão natalense a experiência de retorno à plateia do Teatro Alberto Maranhão depois do nosso maior edifício teatral público passar anos com as portas fechadas. Nesse mesmo ano, acompanhamos a estreia do único espetáculo teatral inédito na cidade: “Ubu: o que é bom tem que continuar” do Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare em parceria com o Grupo Asavessa e o Grupo Facetas, Mutretas e Outras Histórias. No ano seguinte, em 2023, a unicidade da estreia é assumida pelo coletivo Atores à Deriva com a obra teatral "Fábulas de Nossas Fúrias" que contou com apenas duas apresentações. Somos tão tomados pela emoção de ver que o teatro “não morreu” (vejam o limite que vivemos em 2022 e 2023, onde sem as estreia de “Ubu…” e "Fábulas...", por exemplo, não teríamos nada de novas produções teatrais natalenses) que não temos espaço para debates críticos sobre a linguagem cênica, sobre a abordagem estético-política e a investigação artística dessas obras. Torna-se quase constrangedor questioná-las. E se a valorização de uma obra artística se restringe a sua pura existência no mundo e não a sua capacidade de mobilização sensorial, cultural e política; o que temos é a afirmação de uma prática inútil que se descaracteriza como patrimônio cultural e torna-se mero entretenimento, no sentido mais pejorativo que essa palavra possa carregar. É uma ameaça à identidade cultural do cidadão natalense e é uma violação ao direito garantido a ele constitucionalmente.
Tanto "Ubu..." quanto "Corpos Turvos" e "Fábulas...", citados aqui, são obras criadas por artistas profissionais e servem tanto à experiência quanto ao diálogo como qualquer outra experiência estética. As palavras deste ensaio não devem ser interpretadas como um ataque direcionado a nenhuma obra artística produzida em Natal recentemente, ao contrário, a defesa pelo direito à produção e fruição dessas obras é primordial; o que destaco é como a situação atual do cenário artístico natalense tem fragilizado em demasia não apenas o eixo da produção artística em si, mas também os pilares das pedagogias e dos diálogos que englobam a formação da comunidade cultural de uma cidade.
Infelizmente, aqui, a celebração disputa espaço com a criticidade.
A cultura não é inquestionável; ela também possui aspectos negativos, pois diz respeito às formas de pensar, sentir e agir que vamos sistematizando ao longo dos tempos. Portanto, um produto ou manifestação cultural também pode ser machista, racista, transfóbico, capacitista, elitista e deve ser posto em debate.
Somado a isso, parece que somos forçados a nos apoiar na própria escassez da cidade. No cenário nacional, as produções cênicas da Região Nordeste estão sempre à margem ou são estrategicamente posicionadas nos circuitos a fim muito mais de afirmar discursos de descentralização do que realmente efetivar uma inserção horizontal da produção de nossa região dentro da escrita da história do teatro brasileiro. Em outras palavras, o teatro natalense disputa uma cota no circuito das artes cênicas brasileiras, e nesse sentido, caso o artista de nossa cidade tenha modos de subsistir sua própria produção, ele se depara com uma concorrência baixíssima e com uma expectativa crítica proporcional que pode insistir em sublinhar uma equivocada submissão intelectual que em nada corresponde à nossa realidade.
Diante disso, escrevo neste ensaio alguns outros pontos a serem pensados sobre a situação atual do teatro natalense, sem me atentar a uma descrição de fatos (e para isso, convido o leitor ou leitora a ler o texto de Diogo Spinelli antes), mas convidando a um olhar crítico sobre esse panorama.
Para tanto, me permitam, como artista nascida e criada na cidade de Natal, declarar como morto o teatro natalense. Entretanto, a simbologia dessa declaração espera convocar muito mais uma mobilização do que cravar uma sentença; imaginando a relevância dos processos de luto. Não almejo aqui convocar o choro ou a lamentação, mas sim uma possibilidade verdadeira de celebração do teatro natalense (e não apenas de uma estreia isolada) aos moldes latinoamericanos do dia de los muertos, para que os fantasmas nos reencontrem e nos tragam pistas para valorizar a vida.
Causa Mortis
Legistas do teatro natalense podem afirmar que a falta de investimento financeiro público é a causa principal da morte, ou seja, o teatro natalense morreu de fome e extrema pobreza. O que não é uma afirmação equivocada.
Entretanto, a falta de investimentos consistentes no teatro natalense não é uma novidade. Mesmo nos períodos em que o Partido dos Trabalhadores esteve na presidência do país (antes do Golpe de 2016) e havia um fortalecimento das ações do Ministério da Cultura, ainda assim, reclamávamos de como esses investimentos se concentravam nas mãos de poucos grupos/artistas e, preferencialmente, de grupos/artistas com mais anos de trajetória. A estratégia dos editais ainda segue uma lógica meritocrática e que não alcança nem a demanda de produção artística do país e nem garante continuidade nas atividades desenvolvidas. Isso ainda somado à estrutura precária das secretarias estaduais e municipais, que no caso do Rio Grande do Norte e de Natal, nunca apresentaram panoramas realmente satisfatórios em relação às nossas demandas.
A questão que quero destacar é que existem doenças oportunistas em torno dessa realidade e são elas que matam o corpus efetivamente. Logo, o teatro natalense morre, na verdade, por falta de imaginário. A ausência de investimentos, a falta de perspectiva material em torno da profissão do artista e a precarização da vida cultural cotidiana do cidadão natalense, finda por trucidar qualquer possibilidade de imaginação, seja da ordem existencial ou da ordem criativa. Vamos nos tornando cada vez menos capazes em imaginar que é materialmente possível criar nesta cidade e de que faz sentido criar teatro, dança ou performance no chão natalense.
Esse raciocínio se comprova quando olhamos para o passado e analisamos o último boom de efervescência no teatro natalense. Quando a Bololô Cia. Cênica surgiu em meados de 2010 como iniciativa dos artistas Luana Menezes, Paula Medeiros, Rodrigo Silbat e Arlindo Bezerra, uma aura se mobilizou ao redor. Algumas realidades confluíram para o surgimento desse grupo que parecia marcar um ápice para a nova geração do teatro natalense. O curso de Licenciatura em Teatro na UFRN entrou em vigor no ano de 2007 e isso marcou também uma guinada que acompanhava um movimento nacional, onde a maioria dos artistas da cena passaram a se encontrar e se formar nos espaços acadêmicos (essa guinada é perceptível dentro da própria estrutura de grupo do Clowns de Shakespeare, por exemplo, se artistas como Fernando Yamamoto e Renata Kaiser que fundaram o grupo possuem outras formações acadêmicas; artistas como Diogo Spinelli e Paula Queiroz que integraram o mesmo grupo anos depois, já possuem formação na área). Algumas tentativas de agrupamento também se apresentavam como o Projeto Disfunctorium e o Arkhétypos de Teatro, mas ainda diretamente associados ao espaço universitário. A Bololô Cia. Cênica surge de um encontro de estudantes do Departamento de Artes, mas projeta-se radicalmente para as ruas da cidade de Natal. O grupo passa a produzir peças teatrais continuamente, sendo contemplado com alguns editais e ainda concretizando o sonho de quase todo coletivo, de ter a sua própria sede, com a abertura d’ABOCA - Espaço de Teatros, no bairro da Ribeira em 2013. O grupo escreve sua história na cidade com uma ousadia singular e torna real algo que antes parecia inimaginável, visto que a prática teatral, até então, soava como algo restrito aos grandes grupos e artistas antigos. É nesse contexto que surgem, durante a década de 2010 a 2020, grupos como a Sociedade T (fundado pelos artistas Heloísa Sousa, Felipe Fagundes, Moisés Ferreira e Yasmin Rodrigues), Cores Teatro (com direção de Lina Bel Sena), Grupo Interferências (com direção de Thayanne Percilla), Cia. Pérola de Teatro (com direção de Hyago Pinheiro), Grupo Asavessa (com Deborah Custódio, Camila Custódio, Caju Dantas, Leo Ravir e José de Medeiros), Cia. Violetas (com direção de Mayra Montenegro), Teatro Interrompido (com direção de Carol Piñeiro), Grupo Cida (com direção de Franco Fonseca), Grupo de Teatro Eureka (com direção de Denilson David e Nathalia Christine), Teatro das Cabras (com direção de Fernanda Cunha e Heloísa Sousa), entre outras iniciativas que, inclusive, também lançavam artistas de forma independente. Pode ser que muitos desses grupos não saibam da genealogia que os levam até a Bololô Cia. Cênica, mas considero fundamental as ações disruptivas que esse grupo promoveu na cidade e que materializou algo como se eles conseguiram, talvez seja possível. Ou seja, havia um imaginário sendo plantado a partir da Bololô e que colaborou diretamente com o surgimento de várias iniciativas que coincidiam com a manutenção dos grupos/artistas já estabelecidos no cenário local.
Após esse período, vivemos um movimento decrescente com o fim do grupo e a migração de maior parte dos seus integrantes para fora de Natal, o fechamento das portas d’ABOCA - Espaço de Teatros, o fim do Festival Agosto de Teatro e do Festival O Mundo Inteiro é um Palco que nos marcaram por sua periodicidade, o fechamento do Teatro Alberto Maranhão, o fim das edições do Circuito Cultural Ribeira e a posterior pandemia do Covid-19. A partir daí, enterra-se também um imaginário, apaga-se uma paisagem de possível efervescência cultural, fazer teatro torna-se uma prática de raridade e um desejo sem materialidade. A maioria dos grupos citados acima também interromperam suas atividades.
É difícil querer aquilo que não se vê.
8 Feridas no Corpo Morto
1 Não existem espaços para convivência comum e debate crítico sobre cultura em Natal. A cidade já se configura como uma ilha cultural, visto que grupos circulam para fora da cidade com a mesma dificuldade que outros grupos conseguem pousar seus espetáculos aqui. Somado a isso, mesmo com as atividades de publicação constante de textos críticos pelo Farofa Crítica desde 2016, ainda temos uma ausência de atividades críticas e reflexivas nos poucos eventos que se mantiveram, uma ausência de diálogos consistentes entre a universidade e o cenário artístico, além da falta de hábito em conversar de modo contínuo e extensivo sobre teatro nas mesas dos bares ou nos bancos da cidade (não à toa o próprio Departamento de Artes sofreu ataques, entre 2012 e 2013, que retiravam os espaços de convivência criados pelos próprios discentes). Não há imaginário ou revolução que se sustente sem diálogo.
2 As pessoas não veem teatro, logo não fazem teatro. A quantidade de estreias anuais na cidade tem caído vertiginosamente, a realização de temporadas de apresentações são quase impossíveis e matam a vida útil das obras, a circulação de espetáculos é quase tão rara quanto a passagem do cometa Halley; em outras palavras, o cidadão natalense não tem o hábito de ir ao teatro porque não há uma rotina cultural acessível. O artista também é um espectador e um cidadão, sem a possibilidade de ver essa prática como algo cotidiano seguimos tendo nosso imaginário fortemente atacado. Isso sem contar com os prejuízos na criação de repertório em torno da prática cênica contemporânea e dos mecanismos de atualização sobre o mercado da arte nacional e os circuitos de deslocamento das obras cênicas. É como se uma realidade histórica estivesse acontecendo ferozmente, tal qual o anjo descrito por Walter Benjamin, enquanto somos arremessados para fora dela.
3 Mesmo que haja atividades teatrais em outras capitais da região Nordeste que nos são próximas como Recife, João Pessoa ou Fortaleza; ou ainda festivais de relevância nacional como o Festival Internacional de Teatro de Caruaru (PE), o Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga (CE), o Trema! (PE), o Junta Teresina (PI) e o FIAC Bahia (BA), deslocar-se para acompanhar essas ações não é uma prática cultivada.
4 O Departamento de Artes da UFRN mantém uma formação acadêmica em teatro e dança que apresenta significativas fragilidades, com espaços subutilizados (vide o imenso teatro construído em suas dependências, com dinheiro público, e que segue com as portas fechadas), sem atividades como mostras contínuas e fortalecidas que integrem realmente a comunidade natalense à comunidade universitária, além de não afetar em nada o cenário da cidade enquanto este definha de forma explícita. Pouquíssimas iniciativas profissionais (ou nenhuma) têm surgido do encontro entre os discentes dos cursos e que mobilizem o cenário artístico de Natal com pesquisas práticas em teatro ou dança de relevância nacional. Ou seja, resume-se a uma emissão compulsória de diplomas que não transforma a produção artística em Natal e não se preocupa em cuidar da comunidade cultural da cidade.
5 A ausência de festivais de teatro, dança ou performance em uma cidade que já sediou iniciativas como o Festival O Mundo Inteiro é um Palco, o Festival Internacional da Casa da Ribeira, o Circuito Regional de Performance BodeArte e o Encontro de Dança é tão nocivo que escrever um reduzido parágrafo sobre isso seria completamente negligente com o tipo de violência que essa ausência opera na cidade. Eu espero que vocês tenham entendido o quanto isso é grave.
6 Sobre uma certa “estética da precariedade”, que não é nenhuma novidade e é algo compartilhável nas produções cênicas de muitas cidades nordestinas, eu posso apenas replicar aqui um trecho de um ensaio escrito pelo crítico de arte Daniel Guerra (Revista Barril - BA), onde ao falar sobre a produção soteropolitana diz que: “em muitos artistas aqui de Salvador (e arriscaria dizer do Nordeste), vejo que a precariedade, o acidente, o imprevisível e o excesso agem como base, como fatores estruturantes do discurso, podendo ser desenvolvidos ou descartados enquanto forma final, mas estando ali, sempre latentes. Essa é a política imanente do espetáculo. Aquela que não precisa necessariamente ser articulada para estar presente”. Essas palavras são completamente visíveis para o cenário natalense. Entretanto, queria falar aqui da precariedade do discurso, que é também estético embora seja completamente despotencializador. Em terras natalenses cultiva-se o não… “não vai dar certo”, “não é possível”, “não funciona por aqui”. A reincidência dessas frases é tão feroz que tornou-se realidade e subjetividade. Conseguimos vislumbrar outro futuro?
7 A migração nordestina nunca cessou de fato. O “aqui não é possível”, projeta muitos artistas e pensadores importantes para fora de nossa cidade e impede radicalmente seus retornos. Fora de Natal temos o artista Juão Nyn cuja criação e artivismo tem marcado o cenário paulistano de modo disruptivo, ele também é autor de “Tybyra - Uma Tragédia Indígena Brasileira” que é uma das primeiras dramaturgias indígenas publicadas no país, além de ter seu trabalho e atuação circulando por eventos como o Festival Mirada (Santos, SP) e a MITsp. Temos também Jota Mombaça, autora do livro “Não vão nos matar agora”, uma das artistas mais importantes de nosso tempo e que tem circulado por importantes exposições e festivais internacionais. Além do Coletivo Estopô Balaio que tem criado continuamente no bairro do Jardim Romano, extremo leste de São Paulo, vencedor do Prêmio Shell pela iniciativa e que apresenta em sua formação artistas de Natal como Jhoao Junnior e Ana Carolina Marinho. Também cito o artista e pesquisador Rodrigo Severo, que concluiu seu doutorado da USP com a tese “A Performance Negra no Brasil: Estéticas Descolonizadas na Cena Contemporânea”, uma das pesquisas mais significativas já realizadas na área. Além de muitos outros, outras e outres espalhades por esse país. O mais grave é pensar que esses artistas citades podem não ser sequer conhecidos pelos artistas atualmente em formação na cidade de Natal, além do fato de não termos acesso às suas produções pelos isolamentos de circulação que a cidade sofre e que já citei acima.
8 O sonho do artista do teatro, agora é ser artista do cinema. Infelizmente essa frase vai soar como alguma polarização entre as duas práticas artísticas, mas esse não deve ser o foco. Os investimentos no setor audiovisual seguem exponencialmente maiores do que nas práticas cênicas (embora ainda seja no teatro que atores e atrizes podem se formar para uma atuação consistente no cinema), e junto disso vem o imaginário no qual insisto desde o início deste ensaio. Se antes o sonho do artista de teatro natalense era ser visto pelo eixo Rio-SãoPaulo, agora seu sonho é adentrar no circuito do audiovisual, para ser visto na tela; ambos sonhos perigosos. A visibilidade que esse setor oferece junto a uma sociedade midiática que vive através de redes sociais, streamings, televisões, canais de vídeo, reality shows, delineia com voracidade o nosso imaginário e molda nossos desejos. Tanto o consumo quanto a produção nessas mídias aumentaram indiscutivelmente, além da duvidosa democratização desses conteúdos; entretanto, esse sistema segue numa demanda predatória e desigual. O alcance de alguns poucos artistas de Natal nas produções da Rede Globo ou da Netflix ou outras produções cinematográficas não significa uma abertura gradativa de possibilidades. O mercado não é generoso. A expectativa do sonho foi redirecionada, mas a realidade segue problemática.
Ideias para Imaginar outras Nascentes
É preciso assumir o compromisso coletivo e contínuo de cuidar da comunidade cultural da cidade de Natal, e isso inclui tanto os artistas, quanto os articuladores culturais e, principalmente, a população natalense para garantir seu acesso à cultura estabelecido por lei. E uma comunidade se fortalece no encontro corpo-a-corpo, no afeto cultivado, no diálogo, no debate e no embate, na festa, na rotina. As experiências artísticas precisam fazer parte do cotidiano dessa cidade em suas mais diferentes possibilidades criativas, porque isso é parte integral da formação e da vivência de um sujeito político e social. Não existe história, luta, memória, relação, transformação sem cultura.
Nesse sentido, Natal necessita, urgentemente, de um projeto político-cultural efetivo que comece a mobilizar esses encontros e construir os terrenos necessários para que a criação artística se mantenha. E esse projeto precisa ser compartilhado entre o Departamento de Artes da UFRN, as secretarias de cultura do município e do estado, os artistas atuantes na cidade e a própria população natalense.
Natal já possui artistas, pesquisadores e pensadores que nasceram e/ou foram criados no estado do Rio Grande do Norte e que possuem completa autonomia de pensamento e de produção estética, no sentido da capacidade de elaboração dessas práticas e investigações. São pessoas e grupos como a Sociedade T, Ana Claudia Viana, o CIDA, Gira Dança, Alexandre Américo, Grupo Asavessa, Grupo Facetas, Grupo Estação de Teatro, Clowns de Shakespeare que ocupam insistentemente as salas de ensaios de lugares como o Espaço A3, o Espaço GiraDança ou o Tecesol; ou grupos como o Atores à Deriva que estreiam às duras penas em lugares como o Teatro Alberto Maranhão; ou artistas que ocupam as ruas da cidade e espaços alternativos como Yan Soares, Franco Fonseca e Marcone Soares, ou artistas que escrevem insistentemente como Fernanda Cunha. Isso sem citar os professores e professoras, artistas-pesquisadores-docentes, que ocupam os espaços das escolas públicas em Natal e acompanham com compromisso a formação de crianças e jovens na cidade, apesar de toda a aridez. É uma luta constante contra o apagamento, contra o desmoronamento do imaginário e pela possibilidade de manter-se de pé. Se esses artistas criam enquanto nadam contra toda essa maré, imagina o que nos seria possível em alguma onda favorável ao nosso percurso.
O público não está contra nós - artistas, muito pelo contrário. Acreditar que o cidadão natalense não tem desejo em integrar cotidianamente as práticas artísticas e culturais da cidade é desconfiar demais da capacidade intelectual, política e relacional das pessoas que habitam a nossa cidade. E essa desconfiança é, no mínimo, desonesta.
Eu sei que pode parecer que eu estou exagerando ao falar de tudo isso, ou ainda que estou sendo alarmista no tom da minha escrita ao tratar do cenário cultural da cidade, como se isso fosse uma questão que ameaça nossas vidas. Mas, é exatamente isso. É uma questão que ameaça nossas vidas (dos artistas e dos espectadores). Não foi à toa que comecei esse texto problematizando o espaço da celebração e da criticidade no atual "cenário da cena" natalense; pois insisto na perspectiva de que uma existência digna da prática teatral, assim como das práticas em dança e performance na cidade não servem apenas para a sobrevivência pessoal dos artistas ou para a oferta de diversão do final de semana do cidadão natalense; estamos tratando aqui da defesa da atividade cultural como sendo fundamental para a constituição de uma sociedade.
Gostaria de terminar esse texto apenas sublinhando esse teor com uma frase de Nits Jacon, ex-diretora do Festival de Londrina, citada por Paulo Braz (curador) em entrevista para a crítica de teatro Michele Rolim: “As pessoas falam que é preciso investir em educação, saúde e cultura, eu já acho que teria que ser o contrário. Teríamos que investir muito em cultura, educação e depois em saúde, porque uma pessoa que se sente valorizada e tem oportunidade de educação, você pode ter certeza que ela não vai adoecer”.
Foto: Cena de "Retrato do Artista quando Coisa" da Bololô Cia. Cênica.
Me bateu saudades do tempo em que conseguia ver nos olhos dos artistas da cidade a euforia da esperança da criação artística, hoje estamos sem esperanças… e o brilho no olhar vem das lágrimas! Mas é importante ter consciência dessa morte para poder cultivar novos nascimentos!
Excelente provocação. Em Natal urge investimento em pesquisa e criação.