Por José Ricardo
28/03/2024
UM DIÁLOGO A PARTIR DO TEXTO “OBITUÁRIO DO TEATRO NATALENSE” (2024) DE HELOÍSA SOUSA PARA O FAROFA CRÍTICA.
Quando pensamos em teatro, o que nos vem diretamente à mente? Um espaço fechado onde se exibem peças artísticas? Um determinado modelo de apresentação cuja estrutura se resume em espetacularidade? Qual a especificidade dessa linguagem? Além destas questões, que são pontos de reflexão, é preciso situar o teatro no âmbito da experiência coletiva cuja capacidade de afetação vai além da mera observação de um ato artístico. O teatro na cidade de Natal (RN) teve inúmeras fases, algumas mais efervescentes e outras de completa imobilidade. Entretanto, mesmo nas suas fases mais apáticas havia uma certa faísca para a mobilização como, por exemplo, nas produções de Sandoval Wanderley (1) no período de 1929 a 1932. Era uma época de um brasil sem grandes investimentos na área da cultura (a primeira política cultural surgiu apenas nos anos de 1940 e era restrita à Região Sudeste do país) e que, no campo da política, marcava a ascensão do integralismo no Brasil.
As perguntas de primeira ordem neste texto servem para tentarmos criar um movimento de ampliação do que as pessoas fizeram e de como fazem suas produções artísticas no campo do teatro. Não podemos ignorar o fato de que há uma cena popular que emergiu e ainda pulsa em vários recantos da cidade, sob o prisma de formas e linguagens específicas, o que chamamos de um teatro de matriz popular. Destaco os exemplos das ações desenvolvidas no bairro de Felipe Camarão e na Vila de Ponta Negra, onde organizações sociais promovem eventos e grupos ligados às manifestações tradicionais. A base comunitária tem uma importância fundamental para a história do teatro natalense. Tomamos, por exemplo, o período de efervescência do teatro de rua nos anos de 1980 em Natal. Naquela época, mais especificamente em 1983, surgiu a Companhia Teatral Alegria Alegria, cuja importância repercute no teatro de rua até os dias atuais.
A influência da Companhia Teatral Alegria Alegria pode ser vista em grupos como Asavessa de Teatro e Coletivo de Atores Ô de Casa Ô de Fora, na produtora Casa de Zoé e até, de certa forma, em montagens recentes como "Ubu: O que é bom tem que continuar", trabalho realizado pelo Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare, em parceria com o Asavessa e com o Grupo Facetas, Mutretas e Outras Histórias. Atualmente, a tese da falência do teatro natalense foi sustentada recentemente pelo ensaio crítico da pesquisadora Heloísa Sousa para o site Farofa Crítica, cujo texto se intitula “Obituário do Teatro Natalense”. O texto aborda, entre outras questões, o declínio da produção teatral nos últimos anos em Natal e nos conduz a uma crítica pertinente sobre os motivos desse declínio. A tese, muito bem sustentada, é a de que vários fatores levaram ao estado atual de coisas que apatizam a cena natalense. Dentre eles, podemos destacar: a migração de atores e diretores para o Sudeste, a falta de incentivo e políticas públicas estruturantes, o processo de concentração de produção e iniciativas no audiovisual e, até, de certa forma, a impossibilidade de organização da categoria e da crítica.
O texto pode ser considerado, devido à urgência da questão, um dos apontamentos fundamentais para pensarmos em qual grau de instabilidade encontra-se o teatro natalense nos dias atuais. A morbidade, o alerta, o espírito de beira do abismo não devem ser tratados com menor importância. De fato, há, no horizonte da atuação cultural em Natal, o sentimento de fracasso. Neste sentido, uma frase conhecida na literatura filosófica vale a pena ser lembrada: “A pior forma de inação é aquela que vem da falta de consciência de que podemos fazer algo" (2). Sempre é possível mudar e abalar estruturas. Em épocas passadas, mais especificamente no ano de 1999, mesmo sem recursos, um grupo de jovens formados por Ênio Cavalcante, Rodrigo Bico e Alex Cordeiro, provenientes da Escola Estadual Berilo Wanderley, no bairro de Neópolis, fundaram o Grupo Facetas, Mutretas e Outras Histórias e se colocaram na cena do teatro popular, reafirmando nossa base comunitária.
Entretanto, há, neste ponto, um elemento de discordância acerca da ideia central defendida por Sousa ao longo do seu texto. O que nos remete à seguinte questão: qual tipo de teatro fracassou em Natal? Aquele cujas estruturas de funcionamento reiteram a lógica burguesa? O tipo de teatro que necessita dos doutos para sua aprovação? Este teatro, de fato, possui mobilidade, depende de uma série de mecanismos que correspondem à própria realidade do capitalismo, suas estruturas de produção e suas agências de vontade. No teatro de natureza burguesa, não há espaço para outras formas de criação que rompem determinados modos e estruturas. Porém, devemos ressaltar que Natal há uma cena que emerge da periferia, das escolas, das praças e centros de convivência, formada por agentes que não estão no mainstream teatral, mas que corroboram com um outro teatro, a saber, o teatro popular e comunitário.
O novo muitas vezes surge quando a tensão social está nos limites da implosão. Porém, para que o novo apareça como possibilidade de acontecimentos é necessário garantir condições mínimas estruturantes. Deixemos algumas perguntas para serem respondidas: quais são as iniciativas que promovem novos grupos de teatro e novos agentes teatrais em Natal? Há portas que estão sendo abertas ou apenas a velha reciclagem que maquia os velhos atores que pouco se preocupam com a sobrevivência da linguagem na cidade? Para que haja novas organizações e chegada de novos agentes culturais, basta que outros façam um recuo, que compreendam a necessidade de abrir mão de certos privilégios.
A partir deste texto, destaco a importância do poder público para promover tais condições apresentadas como base para a criação de novos grupos coletivos, organizações, espaços e agentes. É notório que em Natal existe um monopólio do fomento cultural, basta olharmos para os últimos acontecimentos no âmbito do teatro nas leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc. Repetem-se os mesmos nomes e as mesmas fórmulas do que será realizado, fato que é central no que virá ocorrer nos próximos anos em termos de produção teatral. Talvez, se fizermos um exercício imaginativo, encontraremos os mesmos modelos estéticos replicados em várias produções escritas nos editais e vencedoras das premiações.
Entretanto, para além do que corresponde ao poder público e à jurisprudência cultural, devemos nos atentar para a circulação de ideias sobre estética e modos de participação cultural. A ideia de morte do teatro não deve ser ignorada, a história nos mostra como a crítica se torna um instrumento de reconfiguração e ressurgimento dos mortos. Pela crítica, somos guiados a perceber a natureza destas ideias que circulam no tecido social. Outra área do conhecimento, como a filosofia, por exemplo, tem explorado a natureza da mesma questão. Existe uma falência de ação e de capacidade de mudança por parte de vários setores da população brasileira. Talvez seja chegada a hora de deixarmos circular essas ideias, para que a partir delas possamos reivindicar um “teatro dos mortos”, não no sentido dubatiano (3), mas como uma metáfora para falarmos do que nunca foi esquecido: a natureza comunitária do teatro.
O futuro é incerto, de fato, ainda estamos recolhendo cacos do projeto de destruição implementado nos últimos anos pela extrema direita brasileira. Projeto este que operou uma verdadeira destruição da cultura nacional. Não obstante, o governo de frente ampla Lula-Alckmin também não aponta para mudanças profundas. Abraçar a cena comunitária, reivindicar a crítica como campo de mudança, promover maior sociabilidade e encontros de discussão profundas será, sem dúvidas, um caminho para abraçarmos a radicalidade que nos interessa, e a partir daí, impulsionar uma cena que hoje encontra-se em total paralisia.
De certa forma, devemos lembrar que a cultura, historicamente no Brasil, sempre esteve alinhada a certos setores da esquerda nacional. Estes setores, hoje, encontram-se em total estagnação, incapazes de propor quaisquer propostas de ruptura radical com o modelo atual de sociedade. Falo aqui, neste ponto, de modelo de sociedade e de horizonte de transformação. Natal e sua esquerda progressista não estão à parte deste processo histórico; muito pelo contrário, aparecem cada vez mais agarrados a uma certa ideia de desenvolvimento teatral parada no tempo. O máximo que conseguimos é manter o que está posto, viver de migalhas que nos são dadas pela institucionalidade. Onde estão os setores da esquerda natalense que não promovem mobilização popular, por exemplo, para voltarmos a produzir no memorável Teatro Sandoval Wanderley? Teatro este que ficou parado por décadas. Insistirei que o teatro em Natal encontra-se em paralisia devido ao enclausuramento de seus agentes culturais, que em parte, encontram-se de mãos dadas com a institucionalidade burguesa, e que não conseguem criar um movimento sequer em torno do que deveria ser o norte de sua atuação: o sentimento de emancipação popular pela cultura.
A cena natalense tem muita potência criativa, basta lembrarmos a quantidade de atores, produtores, cenógrafos e diretores que saíram destas terras. Porém, não podemos mais admitir o culto à individualidade e aos sistemas de coalizão, que permitem o atual estado de coisas que vivemos. Será que não é chegada a hora de nos organizarmos inteiramente como classe e propormos outros modelos de produção, estabilidade e financiamento? Ou continuaremos nesta eterna disputa por um simples pedaço de pão? Vejamos a história, nela encontraremos pistas. O mar que banha Natal também é inspiração para a nossa poética, esta sim, cada vez mais dialética. Nos inspiremos na própria história, nela encontraremos a saída do abismo de nossos dias. Fico com Brecht, afinal, “do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento. Mas ninguém chama violentas as margens que o comprimem”.
Notas de Rodapé:
(1) Sandoval Wanderley (1893-1972) foi um poeta, escritor, ator, diretor e dramaturgo da cidade do Natal. Responsável por fundar jornais e grupos de teatro na cidade. É considerado por muitos um dos grandes expoentes da cena teatral natalense do início do século XX. Hoje, o Teatro Municipal de Natal, localizado no Alecrim, leva o seu nome.
(2) Frase do filósofo britânico Alain de Botton.
(3) Termo que se refere à elaboração conceitual de Jorge Dubatti, célebre teórico argentino. No texto de Dubatti, o autor explicita um tipo de teatro promovido no pós-ditadura de 1973 para evocar a memória dos mortos, um manifesto que propõe a ausência como instrumento político.