Panorâmica Magiluth: A Experiência Teatral enquanto Convite ao Convívio

Por Amilton de Azevedo
03/02/2021

 

Homens que brincam. A sentença simples pode servir como espécie de síntese da pesquisa teatral dos recifenses do Magiluth, fundado em 2004. Encarar o teatro na dubiedade permitida pela língua inglesa - play, simultaneamente peça e jogo, brincadeira - é característica basilar dos seis artistas que integram a companhia. Considerando a última década, é possível verificar o desenvolvimento da linguagem do grupo tomando certos aspectos enquanto exemplares.

Este texto pretende observar parte da produção do grupo nos últimos dez anos, destacando a ênfase dada ao trabalho de interpretação e às relações propostas e estabelecidas com os espectadores, a fim de lançar luz aos dois experimentos on-line estreados em 2020. Serão objetos desta análise panorâmica os seguintes espetáculos: O Canto de Gregório (2011), Aquilo que meu olhar guardou para você (2012), Dinamarca (2017), Apenas o fim do mundo (2019) e os experimentos sensoriais em confinamento Tudo que coube numa VHS e Todas as histórias possíveis, ambas do último ano.

O recorte é circunstancial: tratam-se dos espetáculos apresentados em São Paulo, cidade deste autor, nos últimos anos[1], além dos experimentos on-line. Desse modo, é evidente que tal análise não se pretende absoluta no que diz respeito a um destrinchamento linear da trajetória do grupo, visto que, de certa forma, ignora obras importantes elaboradas no período. Ainda assim, parece pertinente lançar mão das percepções construídas neste sobrevoo a fim de estabelecer pontes entre a pesquisa pregressa do Magiluth e suas propostas desenvolvidas no contexto da pandemia.

Das seis obras selecionadas, apenas duas contam com dramaturgias exógenas - cronológica e curiosamente, tratam-se da mais antiga e da mais recente encenação tradicional (estranho adjetivar o que antes era desnecessário). O Canto de Gregório carrega nas palavras do dramaturgo paulista Paulo Santoro as tantas incertezas que habitam um indivíduo; já o francês Jean-Luc Lagarce traz Apenas o fim do mundo no que se diz, no que se escuta e no que se cala em família.

Dentre as aproximações possíveis entre as obras, pode-se apontar para a presença de Pedro Wagner como o protagonista de ambas. Nos trabalhos com dramaturgia própria do grupo, assinadas por Giordano Castro, não há uma figura central - nos experimentos sensoriais, seria possível dizer que todos os atores se tornam protagonistas, visto que o acontecimento se dava de forma individual.

Pode ser que sejam apenas coincidências, mas de todo modo cabe ressaltar as diferentes lidas das encenações com seus materiais dramatúrgicos. No caso de Gregório, dirigido por Pedro Vilela, as tensões entre forma e conteúdo são visíveis no enfrentamento do imbricado discurso do texto de Santoro - é como se, assim como o protagonista, o Magiluth também estivesse buscando de maneiras diversas atingir a própria compreensão.

Ainda que extremamente cerebral, Gregório já apontava para a ludicidade tão presente no trabalho de interpretação do grupo. Nas tantas voltas e procuras por lógicas internas, o público se via dentro da mente daquela personagem, acompanhando construções e desconstruções, se perdendo e se encontrando junto dos atores - que, visivelmente, divertiam-se em cena.

Nesta viagem ao interior de um complexo cérebro, uma comunhão entre artistas e público permitia a todos os interessados uma viagem. O compartilhamento de um cigarro de maconha firmava um pacto de outra ordem entre palco e plateia: talvez uma tensão inicial, enquanto se compreendia o que estava sendo proposto; mas, depois, um inevitável relaxamento. Era como se o convite fosse "embarque nessa".

Já no caso de Apenas o fim do mundo, a direção de Luiz Fernando Marques Lubi e Giovana Soar faz outras escolhas no enfrentamento de um material denso. A dramaturgia de Lagarce é encenada na íntegra, em um apurado e preciso trabalho de interpretação do grupo. Concebida como um site-specific para o espaço cênico do Sesc Avenida Paulista, a montagem transporta o público pelos diversos ambientes de uma casa de família - e por tempos que podem ser um domingo ou um ano inteiro[2].

Na movimentação pelo espaço, a plateia ora espalha-se, ora aglomera-se, seja em torno de uma grande mesa ou em um canto apertado. Há uma surpreendente transformação dos ambientes, realizadas tanto dentro quanto fora do campo de visão do espectador - Lucas Torres atua nesta contrarregragem, discreta ou gritante.

Desta reorganização constante, é possível apreender sentidos internos e externos à dramaturgia. Na contrarregragem feita por todo o elenco, as personagens parecem estar sempre adequando um cômodo àquele retorno do filho ausente. Ao mesmo tempo, há uma nítida intenção em desestabilizar a recepção do público.

Na proposta site-specific, Lubi e Soar fazem escolhas que intensificam uma distinção presente no texto de Lagarce: quando a família está toda reunida, parecem correr pela superficialidade das coisas; há uma distância entre o que está acontecendo e o que se diz. Nas cenas onde estão apenas Luis, o protagonista, e um de seus parentes, ele escuta atentamente aos tantos derramar-ses da obra.

A encenação constrói espacialmente tais situações de modo que o público também oscile entre esta confortável superficialidade e o incômodo de uma frágil intimidade exposta. O Magiluth organiza fisicamente os convívios entre artista e espectador para compor as atmosferas de Apenas o fim do mundo.

No que diz respeito à ludicidade do trabalho de interpretação, é possível destacar o caráter performativo na construção de personagens, principalmente no caso dos três atores que interpretam personagens femininas (Castro, Bruno Parmera e Erivaldo Oliveira). Assim como em obras anteriores, não há a busca por trejeitos e maneirismos a fim de apoiar o trabalho numa chave de representação. O estabelecimento desta convenção - são atores homens cisgêneros, com figurinos lidos como masculinos, que interpretarão mulheres - faz saltar aos olhos o jogo teatral, o brincar (to play) tão caro ao grupo.

Ao mesmo tempo, não há leviandade nesta lida com dados concretos - e caros à debates do teatro contemporâneo. De fato, o que se percebe em Dinamarca é uma grande atenção lançada à problemática de tratar-se de um grupo formado apenas por homens. A dramaturgia de Castro é uma interessante tentativa de olhar para Hamlet na atualidade.

Muitas das personagens da tragédia shakespeariana estão lá, e são evocadas sem a necessidade de utilizar seus nomes. Os atores transitam de forma orquestrada e fluida, preenchendo com tons pessoais as atuações referentes a cada um - ou uma. No caso das duas figuras femininas centrais à obra, duas escolhas distintas.

Castro, evocando Gertrudes, responde rispidamente à afirmação "fragilidade, teu nome é mulher!", trecho do texto original: "Oi? que merda é essa que você falou? repete! Que você sabe sobre mulher? Você sabe o que é uma mulher? Você sabe o que é ser uma mulher?"[3]. Na sequência, sublinha o caráter performativo do trabalho ao dizer "Você não sabe… eu também não sei!"[4], antes de seguir falando como a personagem.

Já Ofélia está presente enquanto narração, violência e ausência. Oliveira se remete a um espaço iluminado da área cênica, em um dos momentos mais plasticamente belos da encenação assinada por Wagner, para falar daquela que o rio não conservou. Ainda que ao final a menina das fitas volte para uma última dança, é aquela ausência que marca forte; a impossibilidade de evocar a morte de Ofélia no corpo de um homem - apenas, talvez, na leveza de Parmera, de algum modo celebrando uma vida que teima em dançar.

Dinamarca é um brincar de faz-de-conta desde seu início. Uma inebriante celebração do que há de podre no humano. O clima de festa está no champanhe oferecido ao público na entrada, nas cervejas viradas por Torres logo na primeira cena, no convite à bailar. Na dramaturgia, o brincar de ser dinamarquês. De ser feliz. De viver um momento hygge[5]. Na encenação, os atores estão a todo momento se aproximando do público, comentando as ações, fofocando. O convívio se estabelece neste pacto, mesmo que não haja alterações na hierarquia palco-plateia. Basta a atmosfera festiva e as ações contínuas da cena para que o espectador se mantenha inserido no jogo cênico.

Antes de chegarmos em 2020, este voo panorâmico fará um último pouso, voltando no tempo até Aquilo que meu olhar guardou para você. Na obra com direção de Lubi e dramaturgia de Castro, o Magiluth faz, refaz e desfaz o espaço de ação. Começam inquietos, caminhando pela ágora mas agindo efetivamente na plateia. Ao final, estaremos todos juntos no palco.

Das fotografias de fora, exibidas com um miniprojetor, vamos aos poucos nos atentando cada vez mais às fotografias de dentro[6]. As três playlists estruturantes do espetáculo estão escritas na parede, permitindo que o público perceba que até mesmo interrupções que soam espontâneas e aparentam sair do controle estão ali previstas. Desse modo, as narrativas interpretadas pelos atores - onde mais uma vez evidencia-se o caráter performativo dos trabalhos do grupo - podem ser facilmente lidas como ficcionais.

Ainda assim, o que se estabelece é uma bonita intimidade entre quem vê e quem faz. É tudo teatro, talvez nem tudo seja ficção, mas parece que isso pouco importa. Relevante mesmo são os afetos construídos naquele espaço, naquele momento. Aliás, reorganizando a frase: são os afetos que constroem aquele espaço, aquele momento. 

Então, chegamos em obras que não são nada teatro. Tudo que coube numa VHS e Todas as histórias possíveis foram as respostas viáveis do Magiluth ao período de pandemia. Nomeados pelo grupo de experimentos sensoriais em confinamento, ambos contam com direção e dramaturgia de Castro e transformam a ansiedade tão presente em nossa lida cotidiana com os tantos aplicativos em uma deliciosa expectativa[7].

Uma expectativa tal qual sentimos ao som do terceiro sinal, à abertura do espaço cênico, à aparição de uma trupe de teatro de rua. Os experimentos não são teatro, mas são absolutamente teatro. Se é impossível estar junto no mesmo espaço, que se possa comungar de um mesmo tempo[8]. O pacto convivial se estabelece dentro de uma operação curiosa da dramaturgia que permite ao espectador trafegar entre testemunha, cúmplice e personagem da narrativa.

Em ambos os trabalhos, o Magiluth continua nos apresentando duas de suas principais características: o lúdico inerente à teatralidade e a delícia do convívio. Afetivamente constrói-se um espaço em comum, mesmo à distância, para que o público, aqui individualizado, acompanhe histórias de homens que brincam, que amam e que choram.

No doloroso ano da pandemia, o grupo cria obras moment-specific. Elas versam sobre o nosso contexto em diversos sentidos. Formalmente, ao compreender a potência possível na dinâmica multiplataforma que, convencionada com o espectador, fornece uma experiência totalmente contemporânea.

Mas, sobretudo, na acertada escolha temática. Suspendendo o real e mergulhando na ficção, o Magiluth propõe uma aproximação afetiva em isolamento. A relação individual, iniciando e terminando em telefonemas, traz consigo um importante acolhimento para este momento. É uma, entre tantas, das possibilidades de construir obras durante estes tempos tão difíceis.

É impossível mensurar tudo o que se transforma ao longo de uma década. Mas é também bonito verificar o que permanece vivo, pulsante e em pleno movimento. Em seus dezesseis anos de trajetória, o Magiluth segue brincando de teatro - e convidando o público a brincar junto. Um brinde aos pulos de olhos fechados nas piscinas.

 

Referências bibliográficas

CASTRO, Giordano. Dinamarca. Natal: Fortunella Casa Editrice, 2019.

DE AZEVEDO, Amilton. dos não-ditos à meia-luz aos destroços de nós todos (ou apenas um domingo). ruína acesa, 2019a. Disponível em: <https://ruinaacesa.com.br/apenas-o-fim-do-mundo/>. Acesso em: 23 de jan. de 2020.

______. imagine se fossemos dinamarqueses (uma inebriante celebração do podre em nós). ruína acesa, 2019b. Disponível em: <https://ruinaacesa.com.br/dinamarca/>. Acesso em: 28 de jan. de 2020.

______. fotos de dentro, fotos de fora; homens que brincam, homens que choram. ruína acesa, 2019c. Disponível em: <https://ruinaacesa.com.br/aquilo-que-meu-olhar/>. Acesso em: 28 de jan. de 2020.

______. o efêmero do que poderia ter sido. ruína acesa, 2020. Disponível em: <https://ruinaacesa.com.br/todas-as-historias/>. Acesso em: 28 de jan. de 2020.

 

[1] Aquilo que meu olhar guardou para você, Dinamarca e Apenas o fim do mundo foram vistas na ocasião da programação especial do Sesc Avenida Paulista (São Paulo/SP) em 2019, quando da estreia da última encenação. A única exceção é O Canto de Gregório, assistida na programação de comemoração dos 15 anos do grupo na cidade de Recife, no mesmo ano.

[2] Para uma análise aprofundada de Apenas o fim do mundo, ver DE AZEVEDO, 2019a.

[3] CASTRO, 2019, p. 32

[4] Ibidem.

[5] "Se no português fomos prestigiados com a intraduzível e dolorosa saudade, os nórdicos têm uma palavra exclusiva mais confortável: hygge é, grosso modo, um bem-estar tão acolhedor que, ao invés de traduzido, ele poderia apenas ser sentido. Não uma ação; um modo de se viver." (DE AZEVEDO, 2019b).

[6] Para uma análise aprofundada de Aquilo que meu olhar guardou para você, ver DE AZEVEDO, 2019c.

[7] Para uma análise aprofundada de Todas as histórias possíveis, ver DE AZEVEDO, 2020.

[8] Ouvi sobre a possibilidade de comungar um mesmo tempo em uma fala do músico Gregory Slivar.

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