Panoramas da Cena Potiguar: Teatro Contemporâneo

Por Diogo Spinelli
05/02/2021

 

Quais são as obras criadas nos últimos anos no Estado do Rio Grande do Norte que podem ser identificadas sob a chancela de Teatro Contemporâneo? E quais são os coletivos e artistas teatrais potiguares interessados em produzir uma cena que dialogue com este termo? E ao que exatamente esse conceito se refere em nosso contexto? Estas foram algumas das perguntas norteadoras do quarto e último encontro do ciclo de debates proposto pelo Farofa Crítica no projeto Panoramas da Cena Potiguar[1]. Na ocasião, após terem sido realizados os debates sobre Dança, Performance e Teatro Popular, Heloísa Sousa e eu recebemos Alex Cordeiro e Pablo Vieira para discorrer sobre essas e outras questões na live denominada Panoramas da Cena Potiguar: Teatro Contemporâneo no RN.

 

Assim como o ocorrido anteriormente naquele dia, no encontro acerca do Teatro Popular, para que fosse possível traçar essa panorâmica sobre o Teatro Contemporâneo se fez necessário estabelecer primeiramente algumas balizas para que fosse possível compartilhar noções sobre o que se entende quando nos utilizamos desta terminologia.  

Em sua fala, Alex Cordeiro trouxe a desobediência como principal característica do Teatro Contemporâneo: ao serem obras que contestam ou desviam da norma ou da tradição dramática, essas teatralidades se propõem a criar/compartilhar experiências capazes de retirar o público de um estado/cotidiano anestesiado. Pablo Vieira, por sua vez, desembalou três palavras-conceitos para se pensar essa produção: narrativas, materialidade e corpo.

 O encontro sobre o assunto me fez revisitar a teórica Silvia Fernandes, que reuniu uma série de artigos, críticas e ensaios acerca do tema em seu livro Teatralidades Contemporâneas (2010). Uma vez que a coletânea perpassa textos escritos ao longo de uma década (de 1999 a 2009), é possível perceber pelas reflexões da autora como o termo “Teatro Contemporâneo” está sempre em trânsito, adquirindo novos sentidos e significados – e até mesmo novas denominações – à medida em que determinadas tendências parecem irradiar de produções cênicas com aspectos desviantes, desobedientes, em relação às noções mais tradicionais do teatro, tanto do ponto de vista da dramaturgia, quanto da cena em si. Assim, seria mais adequado falar que existem múltiplas “teatralidades contemporâneas” que podem ser reunidas sob a denominação mais abrangente de Teatro Contemporâneo.

Na apresentação de seu livro, a autora aponta alguns dos olhares teóricos sobre os diversos teatros que estariam contidos nessas teatralidades contemporâneas, começando pela visão do alemão Hans-Thies Lehmann, indicando que sua obra, O Teatro Pós-Dramático:

[...] Talvez seja o primeiro estudo a dar conta, de forma abrangente, da teatralidade fragmentária dessas espécies estranhadas de cena total, que rejeitam a totalização, e cujo traço mais evidente é a frequência com que se situam em espaços miscigenados de artes plásticas, música, dança, cinema, vídeo e performance, além de recusarem a ascendência do drama para a constituição de sua teatralidade e seu sentido (FERNANDES, 2010, p. XI)

Seguindo em sua apresentação, Fernandes discorre sobre a tendência para o uso cênicos dos espaços públicos, a partir da experiência do Teatro da Vertigem, indicando também como traço da contemporaneidade as “[...] formalizações instáveis e a valorização dos processos de criação em detrimento do produto acabado, o espetáculo” (FERNANDES, 2010, p. XII). Por fim, a autora discorre sobre os Teatros do Real, tendo como base livro da francesa Maryvonne Saison, no qual a psicanalista:

[...] vê, nas práticas híbridas que conformam o novo teatro, a mais completa rejeição da reprodução da realidade, ao menos nos moldes realistas, e a busca de mecanismos de intervenção direta no real, ou até mesmo de sua anexação, seja pela incorporação de não atores aos espetáculos, seja pela escolha de espaços públicos para as apresentações. (FERNANDES, 2010, p. XII)          

Às tendências elencadas por Fernandes, é possível ainda acrescentar outras, que permearam a última década, posterior à publicação do livro, portanto, e que possuem clara filiação ao que já foi exposto até aqui. Uma delas é aquela que foi denominada de Teatro Documental, no qual amplo material biográfico dos atores (ficcional ou não) e de arquivos documentais (supostamente, reais) passam a fazer parte da cena, dando continuidade aos teatros do real estabelecidos por Saison. As discussões acerca da mescla de ficção e realidade demarcam também, por outro viés, as discussões e as produções que debatem sobre o binômio representação e representatividade, passando a ser questionados os limites da representação nos tempos atuais. Por fim, ainda como desdobramento dessas tendências, há uma proliferação de obras no formato de Palestra-perfomance, que borram elementos que tradicionalmente pertenceriam a essas duas categorias em separado, trazendo grande parte do processo de criação para a cena, e assemelhando-se, a seu modo, aos procedimentos das chamadas desmontagens.  

É a partir deste grande espectro de teatralidades contemporâneas que iremos olhar para a produção potiguar mais recente. Cabe ainda apontar que as formas virtuais de teatro surgidas em 2020 devido ao contexto da pandemia do coronavírus – produção contemporaneíssima, portanto – não serão abordadas neste panorama, ficando este restrito às produções pré-pandêmicas; e ressaltar que as obras nas quais pousarei meu olhar mais demoradamente são aquelas às quais pude assistir nesses cerca de seis anos em que vivo na cidade de Natal, sendo este panorama certamente parcial e insuficiente para abarcar a totalidade da produção potiguar das duas últimas décadas.

O debate com Alex Cordeiro e Pablo Vieira também me suscitou a refletir sobre três outros pontos sobre os quais não conseguirei me demorar, mas que pontuo aqui antes de prosseguir como possibilidades para desdobramentos futuros:

  • A necessidade de olharmos para nossa produção teatral contemporânea a partir de outros referenciais teóricos decoloniais (faço a mea-culpa de trazer para esta conversa os pensadores europeus via Fernandes, mas não sem reafirmar a urgência dessa revisão), para que possamos identificar em nossas tradições mais profundas traços de performatividades que nos interessem, parando de reforçar a suposta dicotomia entre conceitos como Contemporâneo e Popular: A quem interessa nos ver divididos?
  • A importância da educação formal básica no fomento e na criação de inúmeros grupos teatrais potiguares nas últimas décadas, a influência do corpo docente na educação superior sobre a produção que irrompe as paredes da Universidade e deságua no mundo, e o movimento de rede que é possível se desenvolver com o retorno dos alunos, já formados como professores de teatro, às suas cidades natais no interior do Estado. O ensino (não apenas teatral) apareceu fortemente como um assunto transversal em todos os debates do Panoramas da Cena Potiguar;
  • Se por um lado, há a tendência à restringirmos nosso olhar sobre a produção teatral potiguar àquela realizada em Natal, é preciso ponderar que essa produção é realizada por artistas advindos de diversas regiões do Estado, devido a um movimento diaspórico tal qual mencionado por Franco Fonseca no debate acerca da Arte da Performance, o que acaba por concentrar parte dos artistas na capital do Estado. Mas de onde são, de fato, os corpos que fazem as artes cênicas natalenses?

Antes ainda de nos dirigirmos aos anos 2000, referencio aqui duas experiências anteriores, que foram citadas por Alex como importantes precursoras e referências para a linguagem do Teatro Contemporâneo no Rio Grande do Norte: o espetáculo La Serpento (1977), dirigido por Véscio Lisboa, encenado a bordo de uma embarcação no Rio Potengi e que possuía a presença de uma jiboia verdadeira em cena, e a Stabanada Cia de Repertório, formada por Chico Vila, Carlos Nereu, João Marcelino, Castelo Casado, Danilo Guanaes e Marcos Bulhões, que dentre suas obras, possui a montagem de  A missão (1989), de Heiner Müller.

Chegando aos anos 2000, uma das primeiras experiências do Teatro Contemporâneo cujas memórias coletivas parecem resgatar é aquela referente à montagem de Devorando Fausto (2008), dirigida por Marcos Bulhões, figura central no Teatro Contemporâneo potiguar do período, seja por sua atuação como professor do Curso de Licenciatura em Teatro da UFRN, ou como artista. Concebida para ser realizada no Forte dos Reis Magos, a obra teve sua temporada impedida pelo corpo de bombeiros antes da estreia. Mesmo assim, a superprodução ainda figura como grande marco de obra site-specific[2] e de hibridismo de linguagens. A descrição realizada por Piñeiro com a lista de artistas envolvidos na montagem consegue dar a dimensão do projeto:  

2008 “Devorando Fausto” é gravado pela TVU no Forte dos Reis Magos, com direção de Marcos Bulhões, Direção de Arte de Marcelo Denny e coreografia de Maurício Motta o espetáculo performático reuniu cerca de 200 performers, atores bailarinos e músicos, contando com por exemplo o núcleo de performance Marimbondo Caboclo, Balé da Cidade do Natal, Gaya Dança Contemporânea, bem como com o Quarteto de Cordas da UFRN, Banda Elegia e seus Afluentes, Banda Pau e Lata, Danúbio Gomes, Poetas Elétricos e Gabriel Souto. O espetáculo infelizmente teve a temporada impedida pelo corpo dos bombeiros dias antes de sua estréia [sic], adiando as atividades para a procurara de um novo espaço, porém realizou uma apresentação interna para a gravação para a TVU – Tv Universitária. (PIÑEIRO, 2016, p. 41)

Três anos antes de Devorando Fausto, outra experiência transformava o uso tradicional da Casa da Ribeira, ao conduzir uma parcela dos espectadores vendados pelos diversos espaços da Casa, em uma experiência sensorial e sinestésica baseada no livro Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago. Trata-se da obra Uma coisa que não tem nome (2005), do Grupo Estandarte de Teatro, dirigida por Jefferson Fernandes e Lenilton Teixeira. Apresentado originalmente na Casa da Ribeira, o espetáculo realizou temporadas também no TECESol, que, conjuntamente com a Pinacoteca do Estado, se tornou um dos principais locais de apresentação de propostas cênicas que propunham outros tipos de relação espacial entre elenco e público.

Exemplo disso é O bizarro sonho de Steven (2009), do Grupo Facetas, Mutretas e Outras Histórias, com direção assinada por Alex Cordeiro, Ênio Cavalcante e Rodrigo Bico. A obra, que pôde ser revisitada em outra versão no ano de 2019 durante a Ocupa Facetas+20, em comemoração os vinte anos do grupo, demarca a ocupação pelo Facetas no espaço do TECESol, transformando-o em um dos mais importantes polos teatrais da cidade de Natal. Sem que haja uma separação clara entre público e atores-performers, as cenas fragmentárias irrompem nas pequenas instalações também fragmentadas espalhadas pelo espaço cênico – no caso do TECESol, seu pátio interno – fazendo com que o público esteja sempre em trânsito, seja para ver melhor as cenas, seja para desviar-se dos potenciais perigos reais que emergem de uma cena extremamente violenta e performativa, embebida de uma atmosfera onírica de pesadelo.

A obra opera em uma estética do inacabamento, da gambiarra e do risco, remetendo à fragmentação e a um submundo do subconsciente. A noção de rascunho, de work-in-progress, ou de ação performativa também regeu as apresentações de Tubo de Ensaio A: Saturação (2018) e Tubo de Ensaio B: Essência (2018), apresentadas apenas três vezes cada pelos Clowns de Shakespeare como última obra criada no Barracão Clowns em seu antigo endereço no bairro de Nova Descoberta.

Essas ações claramente receberam a influência de outro projeto do grupo, desenvolvido desde 2015: o Laboratório da Cena Clowns de Shakespeare, que anualmente recebe por duas semanas artistas do Brasil e América Latina para uma imersão que resulta em um exercício cênico apresentado uma única vez. Desde sua terceira edição, o Laboratório da Cena vem explorando de diversas formas as relações entre o teatro e a cidade, sendo sua última edição presencial sido realizada já no TECESol, que desde 2019 abriga o coletivo.        

Além d’O bizarro sonho de Steven, o TECESol também foi o local de estreia e apresentação de outras obras que possuíam na itinerância por diversos espaços/instalações um de seus eixos principais. É o caso de Revoada (2014), do Grupo Arkhétypos de Teatro, dirigida por Robson Haderchpeck, e de Entre o choro e o controle (2014), direção coletiva que marca a estreia da Sociedade T. Uma grande atenção aos aspectos visuais e o flerte com outras artes da cena – sobretudo a dança – marcam outros dos trabalhos da Sociedade T, estes já novamente pensados para a caixa cênica, como Pode ser que seja (2015), com direção de Felipe Fagundes, e Tratados de mim mesma na infertilidade (2017), com direção de Heloísa Sousa.

Apesar dos aspectos visuais continuarem sendo importantes componentes de sua poética, a última direção de Heloísa Sousa, A tragédia mais insignificante do mundo (2019), já no Teatro das Cabras, aponta para outro uso da palavra em cena, a partir da dramaturgia proposta e levada à cena pela atriz e dramaturga Fernanda Cunha. Composta por textos que ora possuem um caráter mais narrativo, ora transitam entre o poético, o metalinguístico e o depoimento pessoal, a obra apresenta na investigação/autópsia da morte de três cabras um retrato da violência, no qual a atriz/legista confunde-se/nos ora com as vítimas e ora com seu algoz.

A performatividade, por sua vez, talvez seja o aspecto mais marcante das obras da Bololô Cia Cênica, cuja sede, a A.BO.CA Espaço de Teatros (depois ABOCA Cultural), foi um dos redutos mais efervescentes do Teatro Contemporâneo em Natal até fechar as suas portas em abril de 2018. Dentre as obras mais importantes da Bololô, destacam-se o Retrato do artista quando coisa (2012), inspirada na obra de Manoel de Barros, com direção da Cia Luna Lunera de Teatro, Quer tc? (2011/2015), com concepção, atuação e direção de Rodrigo Silbat, Manga Rosa (2015), dirigida por Luana Menezes e Rodrigo Silbat e Memórias de Quintal (2015), com direção de Alex Cordeiro e Rodrigo Silbat.

Ao olhar essas obras em conjunto – sobretudo a tríade criada em 2015 – é possível identificar a forte presença dos corpos, dos relatos íntimos e das memórias dos atores/performers-criadores como importantes componentes dos trabalhos, não apenas na composição de suas dramaturgias, mas também enquanto materialidade e performatividade. A exploração da nudez, da sexualidade e de arquivos pessoais tais como fotos e páginas de diário, gerava um teatro com uma linguagem que falava diretamente a um público jovem e que permitia vislumbrar as relações político-sociais por uma lógica que caminha do privado em direção ao público.

Em via contrária, as duas obras mais recentes do Grupo Estandarte – Desaparecidos (2012), com dramaturgia de Henrique Fontes, e Mulheres Invisíveis (2018), com dramaturgia de César Ferrario, ambas dirigidas por Jefferson Fernandes e Lenilton Teixeira – partem de notícias/documentos/casos de episódios reais ocorridos no Rio Grande do Norte para criar obras que tencionam uma camada ficcional e os posicionamentos sociopolíticos do próprio grupo, numa aproximação com o chamado Teatro Documental.

Por sua vez, essa tendência será ainda mais explorada pelo Grupo Carmin, principalmente nas obras Jacy (2013), dirigida por Henrique Fontes, e A invenção do Nordeste (2017), com direção de Quitéria Kelly. Além de fazer uso de arquivos documentais, a dramaturgia de ambos os trabalhos – notadamente mais em Jacy – inclui em cena o próprio processo de criação da obra, fazendo com que possamos acompanhar “pelo avesso” parte do processo criativo, dos caminhos e pensamentos que resultaram na obra que está sendo apresentada.

Outra caraterística basal dessas obras é a relação estabelecida com a linguagem audiovisual manipulada ao vivo em cena seja por Pedro Fiuza no caso de Jacy, seja pelos próprios atores em A invenção do Nordeste, constituindo-se em mais uma camada de dramaturgia levada ao palco. Apesar de mais evidenciada nos trabalhos do Grupo Carmin, a utilização de recursos audiovisuais está presente também em outras das obras aqui mencionadas, como O Bizarro Sonho de Steven, Tratados de mim mesma na infertilidade, Quer tc? e Memórias de Quintal.

Conforme podemos perceber ao percorrer este pequeno panorama, ao longo destes últimos vinte anos, as teatralidades contemporâneas estiveram presentes na produção potiguar desobedecendo as normas de múltiplas maneiras. Quando for possível voltar ao teatro de forma presencial, será interessante verificar que aspectos das experiências virtuais vivenciadas desde 2020 serão resignificados por esse teatro.

  

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

LIMA, Artemilson Alves de. Escaladas da contracultura: Natal, década de 1980 / Artemilson Alves de Lima. 2017. 231f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais). Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Natal: 2017.

FERNANDES, Silvia. Teatralidades Contemporâneas. São Paulo: Editora Perspectiva: 2010.

PIÑEIRO, Maria Carolina de Hollanda Cavalcanti. Estudos em Reperformance: Registro da prática Pina, Marina em Carolina. 2016. 247f. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas). Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Natal: 2016.

 

Foto da capa: Pode ser que seja, da Sociedade T. Foto: Helena Maziviero


[1]  Projeto realizado com recursos da Lei Aldir Blanc Rio Grande do Norte, Fundação José Augusto, Governo do Estado do Rio Grande do Norte, Secretaria Especial de Cultura, Ministério do Turismo e Governo Federal.

[2] O termo site-specific pode ser traduzido literalmente como local-específico, e é adotado para falar de obras concebidas para serem realizadas especificamente em determinada localização, levando em conta seus aspectos arquiteturais, históricos ou simbólicos. 

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