Por Heloísa Sousa
06/02/2021
O projeto Panoramas da Cena Potiguar[1] ao mesmo tempo que se apresenta como um desejo de dialogar mais sobre aspectos históricos da produção artística e cênica no estado, também se configura como uma etapa do movimento que o Farofa Crítica vem desenvolvendo ao escrever sobre obras que estreiam e circulam pela cidade. No encontro contínuo com obras em teatro, dança e performance, associado a escrita e publicação de textos críticos sobre as mesmas, delineamos esse panorama do que vinha sendo produzido e apresentado na cidade desde 2016 (ano de surgimento do Farofa Crítica) até os dias atuais. Embora o surgimento de um espaço virtual de publicação dessas críticas tenha uma data estabelecida, a prática de acompanhamento dos percursos vividos pelo estado nas criações cênicas antecede esse período e se confunde com vivências, histórias e memórias que desenham a paisagem que temos atualmente, ao mesmo tempo em que revelam alguns apagamentos.
No dia 16 de janeiro de 2021, para inaugurar este ciclo de debates sobre a cena potiguar, convidamos os artistas e pesquisadores Ana Claudia Albano[2] e Alexandre Américo[3] para dialogar conosco sobre a produção em dança no estado do Rio Grande do Norte entre os anos 2000-2020. Esse debate está disponível, em formato de vídeo, no canal no Youtube do Farofa Crítica[4]. Esse texto, apesar de ter a intenção de tratar sobre o que foi discutido nesse debate, oferecendo outra mídia de acesso a essa discussão tão fundamental, não necessariamente consiste em uma transcrição do que foi dialogado. As ideias que serão aqui apresentadas partem das provocações colocadas por todos os participantes do debate como dispositivos para acessar algumas memórias e pensar sobre percursos e trajetórias.
Para iniciar esse panorama, trouxe para os convidados a provocação de conseguir citar nomes de artistas, obras, eventos e outras ações em dança no estado do Rio Grande do Norte, entre os anos de 2000-2020, atravessando inclusive as suas próprias práticas e trajetórias, compreendendo essa historiografia como algo do momento presente - compor história em tempo real. Como afirma Alexandre Américo, a historiografia está sendo escrita no aqui e no agora. E a partir da citação a essas memórias, vamos afirmando potências, políticas e poéticas, além de desenvolver outros pensamentos sobre elas que nos auxiliem na compreensão das práticas na atualidade.
A primeira problemática evidente, que se expõe e se repete nos outros debates que integram o Panoramas da Cena Potiguar, é sobre a dificuldade em delinear traços históricos que possam abranger, de fato, o estado do Rio Grande do Norte. As geografias nesse país ainda insistem em contínuas hierarquias que distanciam regiões, estados, cidades, zonas, bairros – os deslocamentos e circulações não são estratégias simples e acessíveis, nem a nível pessoal, nem profissional. Dessa forma, acabamos por circunscrever esse panorama nas práticas desenvolvidas na capital potiguar, Natal, reconhecendo as lacunas que isso gera, os apagamentos que podem provocar, ao mesmo tempo em que entendemos que o território da capital é também ponto de convergência entre corpos que se deslocam, que transitam, que migram em busca de outros terrenos possíveis a criação. Ainda assim, mesmo sabendo desse trânsito contínuo, de que as práticas desenvolvidas em Natal não se restringem a artistas apenas natalenses, é importante pontuar as necessidades de criar políticas públicas, desejos e alternativas aos movimentos de circulação que permitam encontros entre corpos e vivências em diferentes territórios. A multiplicidade da paisagem expande o referencial do horizonte.
Pensando na importância de criar formas de registrar percursos históricos, destacam-se movimentos da pesquisa acadêmica em Natal, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, que findam por trazer contribuições muito significativas nesse campo e que precisam ser continuamente ampliadas enquanto discussão crítica e teórica, assim como, uma ampliação territorial. Nessa perspectiva, Ana Claudia Albano cita o trabalho de conclusão de curso do historiador Gleydson Dantas, da Cia. Edição Limitada, intitulado “A arte de Terpsícore em Natal -1959 a 1979: por uma construção histórica da dança teatral” (2005), orientado pelo Prof. Dr. Durval Muniz. E a esse, acrescento os textos que vêm sendo publicados pelo Prof. Dr. Marcílio Vieira, também da UFRN e que trazem outros panoramas dessa dança em décadas subsequentes, como é o caso dos textos “Dança sobre águas claras: A construção de grupos e companhias de dança na UFRN por Edson Claro” (2016), “Décadas de 1960 a 1970: registros em dança da cidade do Natal” (2013) e “Trajetórias e histórias da dança em Natal” (2012).
O professor e pesquisador Marcílio Vieira ainda é autor da pesquisa de pós-doutorado intitulada “Persona de Dança: Edson Claro – poéticas, práticas e interfaces em dança” (2016) na UNESP, se debruçando sobre a trajetória de um dos artistas da dança potiguar mais significativos e sua importância ímpar nas práticas artísticas e pedagógicas. Edson Claro (1949-2013) foi coreógrafo, professor, pesquisador e bailarino potiguar, criador do Método Dança Educação Física e que, não apenas influenciou na criação de vários grupos de dança na cidade e na estruturação acadêmica das pesquisas em dança na UFRN, como também atravessou e tornou-se referência na trajetória de muitos outros artistas potiguares. Uma personalidade que sobrevive enquanto memória e representação de uma investigação incansável em dança.
Alcançar essas referências históricas não dizem somente da construção de narrativas sobre o passado, mas também de compreender esse passado como parte constituinte do presente.
Entre os eventos citados por Ana Claudia Albano como situações de mobilização da prática artística dos fazedores da dança no estado, estão o Encontro de Dança, festival realizado por Diana Fontes, que já conta com doze edições ocupando cidades diferentes do estado. Esse evento é pontuado não apenas pela possibilidade de criação de espaços de convergência entre artistas e públicos sobre a dança contemporânea produzida em vários estados do país e também no exterior; mas, por se configurar como espaço pedagógico contribuindo com a formação de artistas através da realização de oficinas e residências de média duração que proporcionam encontros entre artistas da dança potiguar e outros articuladores. Novamente, retomamos a dificuldade de circulação enfrentada pelos artistas daqui, não somente no sentido de distribuição de sua obra artística por outros espaços, como também no sentido de aperfeiçoamento técnico e formação. Na impossibilidade de realizar deslocamentos, a chegada de outros profissionais na cidade, traz alguns respiros e possibilidades de movência das pesquisas, ao mesmo tempo em que merecem ser problematizadas e questionadas em suas configurações. Reitero aqui, uma fala de Ana Claudia Albano, durante o debate, que elucida bem o panorama da dança em Natal, quando diz que: “A dança na cidade é pouco escoada, embora muito vivida”.
Em uma perspectiva mais ampla, Ana Claudia Albano traz uma abordagem pertinente ao visualizar que na primeira década do século XXI, temos uma ênfase em estratégias grupais – focadas na criação artística a partir de companhias e grupos de dança, enquanto que a segunda década fortalece a coexistência entre esses coletivos e trabalhos individuais e autorais; reforçando ainda os hibridismos entre a dança e outras linguagens artísticas como o audiovisual, a instalação, a performance, entre outras. Os próprios artistas convidados para esse ciclo de debates representam essa configuração, quando tanto Ana Claudia Albano quanto Alexandre Américo conseguem versar entre criações em grupo e criações individuais, transitando entre diversos formatos de organização e diversificando as possibilidades de suas pesquisas. Considerando Natal, esse é, inclusive, um movimento bem mais característico na dança do que no teatro, enquanto neste último ainda prevalece a necessidade da grupalidade[5] para que haja criação.
A artista e debatedora convidada pontua ainda o ArteAção, projeto idealizado pelo espaço cultural da Casa da Ribeira, onde Ana Claudia Albano foi educanda e educadora, e que era destinado aos artistas da dança, como espaços de núcleos coreográficos que provocavam o pensamento em dança. A dimensão pedagógica ressaltada e destacada, também, por Alexandre Américo, ganhou tanta relevância em todos os debates realizados do Panoramas da Cena Potiguar, que podemos considerar a urgência em se acrescentar a temática das pedagogias em próximos debates como esse, afirmando nomes e estratégias pelo estado que pensem a elaboração de práticas educativas sobre as artes da cena em diferentes contextos. Alexandre Américo destacou ainda a importância do curso de Licenciatura em Dança da UFRN, criado em 2009, assim como seus projetos de extensão, de pesquisa e programas de pós-graduação que mobilizam a pesquisa e as inquietações em dança na capital e para além dela, se considerarmos a crescente migração de estudantes das outras cidades do estado para Natal a fim de cursar a graduação. O curso, enquanto licenciatura, se destaca pela formação contínua de profissionais da educação em dança ocupando instituições públicas e privadas pelo estado, além de contribuir com o desenvolvimento do pensamento, da pesquisa e da prática em dança para atingir outros lugares de criação e desejo. Américo ainda pontua as Semanas de Licenciatura em Dança, eventos anuais que já ocorrem há alguns anos e que trazem ênfase nas pesquisas e produções de pensamentos em dança dentro do espaço acadêmico em consonância com outros espaços e articuladores da arte na cidade.
Inúmeros nomes de grupos e artistas podem ser citados quando se pensa na história da dança no Rio Grande do Norte, em qualquer recorte histórico e temporal. No entanto, faço a escolha, neste texto, de pontuar as obras artísticas pensadas em conjunto durante o debate, citadas pelos participantes e algumas, inclusive, com textos críticos publicados no site do Farofa Crítica. Essa escolha se deve por tentar considerar a grupalidade como emergência da criação e a elaboração da obra artística como aquilo que marca o percurso histórico e produz memórias.
Pensando em obras que provocam os lugares comuns de exploração na dança, que propõe hibridismos e performatividades, questionando padronizações, podemos citar: Missa de Alcaçuz (2004) com direção de Edson Claro para a Cia. Dos Meninos (UFRN) sobre a obra musical de Danilo Guanais; Fragmentos da Hora Absurda (2007) com direção de Andrea Copeliovitch para a Gaya Dança Contemporânea (UFRN) onde uma atriz e diretora de teatro conduz um processo criativo com um grupo de dança; Proibidos Elefantes (2013) com direção de Clébio Oliveira para a Cia. Gira Dança.
Importante citar ainda a obra Sobre o que restou (2009) de Anádria Rassyne e Rodrigo Silbat da Procura-se Cia. De Dança. O último artista também dança a obra Quer TC? (2011) que trata de relações virtuais a partir do corpo em movimento.
Outra obra que afirma uma experimentação híbrida é o espetáculo Sente-se com Maurício Motta e Anízia Marques da Sí-La-Bas Cia. de Dança que durante alguns anos foi um dos grupos da cidade que explorou a linguagem da dança-teatro. Além de espetáculos da própria Ana Cláudia Albano e suas composições coreográficas e imagéticas em parcerias com artistas visuais, como é o caso de Pelo Pescoço[6] (2018) criado com Daniel Torres e Ad Infinitum com direção de Mathieu Duvignaud.
Entre as produções de Alexandre Américo, é necessário citar a obra Exit (2018) criada em parceria com os artistas Rayanna Guesc, Yasmin Rodrigues, Ana Vieira e Iêgo José, dando destaque para a versão dançada no Beco da Lama na Cidade Alta em Natal, onde misturados ao público, os artistas dançam entre luzes alucinantes e música eletrônica em um espaço restrito e não convencional, vulnerável e potente.
Acrescento ainda, neste texto, uma obra dirigida por mim para a Sociedade T, em 2017, intitulada Tratados de Mim Mesma na Infertilidade[7], contemplada com o Rumos Itaú Cultural 2015-2016 e que traz em cena dois atores e duas bailarinas encenando um espaço psicológico e simbólico de uma figura de mulher, que através de uma lógica coreográfica também propõe fusões entre dança e teatro.
E dentre muitas outras obras possíveis, citar ainda o repertório do Coletivo Independente Dependente de Artistas (CIDA) com trabalhos que atravessam dança, performance, videodança, intervenções e composições curtas e pontuais que experimentam lugares limites dos corpos, em sentido poético e físico. Dentre essas obras destaco Etéreo (2014) de René Loui e Eu, Fêmea[8] (2015) de Rozeane Oliveira.
Para encerrar esse texto, evoco as percepções de Alexandre Américo durante o debate, ao sugerir se pensar a dança que estamos criando a partir das ideias de simultaneidade e impermanência, compreendendo ainda “dança como escolha política”. Enquanto artistas e pesquisadores que se debruçam sobre a arte e suas emergências contemporâneas, Américo reafirma a potência da arte colaborativa como ações sistemáticas e não apenas curtas e pontuais, que se esvaem no tempo e desaparecem na movência das dunas, para citar a metáfora trazida pela artista e escritora Naara Martins no debate sobre performance. Deixo aqui, palavras de Alexandre Américo, como desejo coletivo para que haja continuidade de uma “cena menos colonial, menos hegemônica e mais experimental”.
REFERÊNCIAS
DANTAS, G. R. A arte de Terpsícore em Natal – 1959 a 1979: por uma construção histórica da dança teatral. 2005. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2005.
VIEIRA, M. S. Dança sobre águas claras: A construção de grupos e companhias de dança da UFRN por Edson Claro. In: SIMPÓSIO REFLEXÕES CÊNICAS CONTEMPORÂNEAS, 2016, Campinas. Anais do Simpósio Reflexões Cênicas Contemporâneas. Campinas, 2016.
VIEIRA, M. S. Décadas de 1960-1970: Registros em dança da cidade do Natal. In: VII Reunião Científica da ABRACE, 2013, Belo Horizonte. Anais Arte da Cena: A pesquisa em diálogo com o mundo. Belo Horizonte, 2016.
VIEIRA, M. S. Trajetórias e histórias da dança em Natal. In: VII Congresso da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas, 2021, Porto Alegre. Anais Tempos de memória: vestígios, ressonâncias e mutações. Porto Alegre, 2016.
[1] Projeto realizado com os recursos da Lei Aldir Blanc Rio Grande do Norte, Fundação José Augusto, Governo do Estado do Rio Grande do Norte, Secretaria Municipal Especial da Cultura, Ministério do Turismo e Governo Federal. Consistiu na realização de quatro debates, transmitidos ao vivo pelo canal no youtube do Farofa Crítica, onde artistas e pesquisadores foram convidados para falar sobre dança, performance, teatro popular e teatro contemporâneo produzido no Rio Grande do Norte.
[2] Ana Claudia Albano é intérprete, criadora, professora em dança, com mestrado em Artes Cênicas e doutorado em Educação pela UFRN. Desenvolve, desde 2010, um trabalho que integra dança e artes visuais nos seus estudos, preparações corporais, oficinas, aulas, processos de criação e espetáculos. Atualmente é sócia do Espaço a3, onde realiza seu trabalho em parceria com o artista visual Daniel Torres e ministra a oficina permanente em dança contemporânea Um lugar de partida, tendo atuado também como educadora no Projeto ArteAção, do Espaço Cultural Casa da Ribeira, em Natal, entre os anos de 2009 a 2013, e como dançarina na Gaya Dança Contemporânea - UFRN, entre os anos 1990 a 2008. Para ver mais sobre o trabalho da artista, acesse: http://anaclaudiaviana.art.br/
[3] Alexandre Américo é artista e pesquisador da dança com Licenciatura em Dança e Mestrado em Artes Cênicas pela UFRN. Hoje é atuante na área da investigação em arte contemporânea, com enfoque em estruturas performativas e seus desdobramentos dramatúrgicos e diretor artístico da Cia. Gira Dança (Natal-RN).
[4] Para assistir aos vídeos dos debates do “Panoramas da Cena Potiguar”, acesse: https://www.youtube.com/channel/UCmI26ZeRX9p1RB7MaNNJstQ
[5] Para problematizar e discutir mais sobre a questão da grupalidade entre artistas do teatro na Região Nordeste, ver a entrevista “Traços de um Nordeste Desobediente” de Alex Codeiro (RN) publicado neste dossiê.
[6] Heloísa Sousa publicou a crítica “Bruto, rústico e sistemático” no site do Farofa Crítica sobre essa obra.
[7] Diogo Spinelli publicou a crítica “Enunciados que vêm de dentro” no site do Farofa Crítica sobre essa obra.
[8] Diogo Spinelli e George Holanda publicaram críticas sobre essa obra no site do Farofa Crítica.