Por Heloísa Sousa
06/02/2021
A performance é, comumente, uma arte de guerrilha, de desvio, de desobediência. Deslocando-se dos formatos institucionais, estéticos e quaisquer outros parâmetros que busquem defini-la em algum tipo de estrutura reconhecível e reproduzível. A performance é uma linguagem artística de experimentação que compõe a si mesma no próprio ato, delineia seus próprios termos na prática para que no minuto seguinte esses limites sejam imediatamente questionados e postos em dúvida. O hibridismo de linguagens, o experimentalismo, os debates políticos, éticos e estéticos, as crises da representação são algumas das características que marcam as práticas em performance. Mas, reconhecendo e afirmando as inúmeras referências teóricas e artísticas sobre o assunto, com abordagens históricas, conceituais, antropológicas, estéticas e procedimentais já existentes[1], não almejo nesse texto elaborar quaisquer tentativas de definição da ideia de performance. Mesmo compreendendo algumas dificuldades existentes em se compreender as práticas em performance, que de sobremaneira se reduzem a cenas curtas ou aquele material insuficiente para compor uma encenação em sua extensão convencional, como também não se restringem aos estigmas de nudez, violência e visceralidade (embora, ao mesmo tempo, exponha tudo isso e rasguem paisagens reais com aquilo que pode mover nossos sentidos a partir desses tabus); não recorrerei aos vacilos de tentar definir algo mutável, antes disso, prefiro que as ações falem por si.
Escolho essa abordagem em alusão a uma experiência pedagógica que pude desenvolver com alunos da terceira série do ensino médio em instituição escolar privada onde lecionei Artes durante o ano de 2015. Na ocasião, seguindo os parâmetros sugeridos pelo livro didático adotado na época, um dos assuntos a serem tratados em sala de aula era sobre a arte da performance. A excitação em tentar compreender o que era aquilo que parecia tão estranho aos olhares, comparando com o que convencionamos a nomear como arte, tornou-se combustível para que alunos e alunas se concentrassem no exercício de tentar apreender a linguagem artística em questão. Ao invés de apontar alguma definição no quadro branco ou trazer algum texto para ser lido ou qualquer outro recurso teórico, decidi apenas mostrar várias e várias performances realizadas no Brasil e em outros países durante algumas aulas. Fotos, vídeos, descrições e até reperformances em sala de aula foram feitas, na tentativa de apresentar a ideia de “isso é uma performance”. Ao final do prazo estipulado para elaboração desse conteúdo, seguindo as normas de avaliação por provas, em uma das questões coloquei a pergunta:
O que é performance?
Obviamente que eu sabia que não havia conceituado isso em sala de aula, assim como, tinha consciência da impossibilidade de reduzir a linguagem em uma frase que contemplasse todas as possibilidades em torno dessa prática, embora haja inúmeros livros, dissertações, teses e artigos que versem sobre as características da performance. A pergunta era mais uma provocação do que algo que teria uma resposta correta. Para minha surpresa e deleite, ao corrigir as avaliações, me deparei com dezenas de parágrafos escritos por adolescentes tentando organizar o pensamento sobre o que seria performance a partir de todos os exemplos mostrados a eles em sala de aula. As palavras, termos, sensações, ideias escritas por eles não se diferenciavam muito dos pensamentos elaborados por grandes nomes como o do pesquisador Renato Cohen. Em uma turma de quase quarenta alunos, talvez quatro ou cinco não tenham conseguido elaborar uma resposta devido as suas ausências em sala de aula; dos demais, estive diante de pensamentos elaborados com complexidade que me emocionaram enquanto docente.
Em homenagem a esses alunos e alunas, buscarei tatear essa estratégia nesse texto e trazer um panorama da performance potiguar a partir da citação de artistas, eventos, obras e também ideias elaboradas durante o debate dedicado a esta linguagem no Panoramas da Cena Potiguar[2] da qual participaram eu, Diogo Spinelli[3], Franco Fonseca[4] e Naara Martins[5]. Assim como no texto anterior, onde escrevi sobre o debate acerca da produção em dança[6] no estado, não há, aqui, o desejo de fazer uma transcrição do que foi debatido nos vídeos. Ainda mais, no debate sobre performance, as pontuações feitas por Franco Fonseca e Naara Martins são tão fortes e singulares que não há como evitar de assistir o debate inteiro[7] se desejar continuar a saber mais sobre esse panorama.
Talvez um dos pontos mais altos do debate tenha sido a metáfora das dunas trazida por Naara Martins. A pesquisadora propõe que pensemos a própria geografia da capital potiguar, marcada por esses ecossistemas de areia fina que se movem pela ação do vento, como sendo uma metáfora também das relações culturais, artísticas e históricas que aqui se elaboram. As dunas, em sua mobilidade, mutabilidade e inconstância revelam não somente a performatividade da cena natalense – em seus experimentalismos, termo que me parece tão marcante nas práticas cênicas de Natal – mas também a “inconstância das nossas histórias e registros”, nas palavras de Martins. Essa ação do vento faz a duna se mover, infiltrar casas abandonadas ou ainda desaparecer. Não à toa, o pensamento de que poucas coisas conseguem permanecer em Natal nos rodam, seja a impermanência e descontinuidade dos corpos em vivência e arte, dos eventos, das obras em temporadas ou das pesquisas.
Duas questões de ordem política atravessam essa metáfora. São elas, a ausência de políticas públicas de fomento da produção cênica potiguar que garanta a continuidade de projetos, eventos e trajetórias artísticas e que influenciam diretamente nas impossibilidades de circulação dos artistas em seu próprio estado – como já foi pontuado anteriormente no debate sobre dança. Essas barreiras dos deslocamentos no próprio território potiguar colaboram para que as discussões sobre as práticas no estado acabem circunscritas ao que é percebido na capital. A outra questão diz respeito ao conservadorismo, pontuado por Martins como uma das grandes problemáticas na cidade, quando as estruturas hegemônicas insistem na negação dessa mesma mutabilidade, fluxos e deslocamentos, permanecendo na repetição e reafirmação de lógicas rígidas, moralistas e opressoras que confundem expressões de guerrilha, de questionamento e provocação como uma ameaça à ordem vigente que exclui violentamente corpos dissidentes. Basta pensar nas reações midiáticas da cidade a performance de Pêdra Costa no XIII Salão de Artes Visuais (2010) ao retirar um rosário do cu; a intervenção Corpo Livre (2012) do Cruor Arte Contemporânea onde corpos nus dançavam no campus universitário ou ainda na reperformance de Liliane Bezerra onde a artista caminha pelas ruas arrastando panelas e outros objetos acoplados no seu corpo.
É diante desse conservadorismo de políticas, práticas e pensamentos que ideias, grupalidades e estratégias vão se formando em espaços de encontro de artistas pela cidade e fora dela. Necessário destacar que, mesmo pontuando que a maior parte das ações que serão citadas estão em Natal, há um fluxo significativo de artistas e pesquisadores que se deslocam das cidades interioranas para a capital e, algumas vezes, regressam a suas cidades de origem carregando essas vivências para continuar a elaborar suas poéticas nesses territórios.
Pontua-se a relevância de docentes do Departamento de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) na introdução de teorias e práticas performativas que contaminam as linguagens cênicas já desenvolvidas na cidade. Um deles é o Prof. Dr. Marcos Bulhões, que atualmente leciona na Universidade de São Paulo (USP) e que durante seu período de docência na UFRN, com a criação do coletivo de performance Maribondo Cabôco, influenciou muitos artistas e pesquisadores nas investigações relacionadas a arte da performance e suas possibilidades de afetação e hibridismo das demais linguagens cênicas. Além da Prof. Dra. Naira Ciotti, coordenadora do Laboratório de Performance da UFRN e propositora de eventos como o Reperformar o Afeto e o I Fórum de Performance Potiguar. Destaco ainda a relevância da docente na orientação de várias pesquisas no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRN que perpassam o campo da performance e suas pedagogias.
São nesses atravessamentos, que surge em 2008, como uma iniciativa de alunos do curso de Licenciatura em Teatro da UFRN, o Projeto Disfunctorium. Coletivo fundado por Juão Nyn, Christyne Silva, Catarina Alice, Melina Varela, Carlos Eduardo de Oliveira, Yuri Kotke Cunha, André Bezerra e Carol Piñeiro. O projeto se debruçava sobre experimentações e pesquisas em linguagens híbridas, propondo performances e intervenções que contaminaram espaços dentro e fora da universidade. É importante destacar o fato da proposta do projeto ser independente, ocupando inúmeros lugares da cidade com performances e ações diversas, promovendo ainda experiências pedagógicas que acabaram introduzindo muitas pessoas que frequentavam o espaço universitário dentro dessa linguagem.
Em 2011, ex-integrantes do Projeto Disfunctorium criaram o Coletivo ES3 dando continuidade às suas práticas nessa linguagem e ainda, acrescentando ao seu repertório, obras em teatro e dança performativas. O Coletivo ES3, formado por André Bezerra, Chrystine Silva, Felipe Fagundes e Yuri Kotke, foi um dos coletivos mais expressivos na história da cidade a partir dessas práticas, obtendo ainda reconhecimento em outros estados pelo país. Entre os anos de 2011 e 2013, o coletivo produziu o Circuito Regional de Performance BodeArte[8], evento que reuniu dezenas de outros grupos e performers independentes de diversas partes do país para intervirem pela cidade; chegaram a integrar a programação desses circuitos artistas como Jota Mombaça, Rubiane Maia, Otávio Donasci, Lúcio Agra, Bia Medeiros, Guto Lacaz, Ricardo Alvarenga, entre outros.
Desse ponto em diante, muito grupos de teatro e dança da cidade acabam por permitir que suas obras sejam atravessadas por essa performatividade, seja nos limites da representação, nas composições de imagens, nos hibridismos de linguagem ou ainda na exploração dos limites do corpo, do tempo e do espaço em cena. Podemos citar as experiências do Grupo Cores de Teatro (UFRN) que sob a direção de Lina Bel Sena criou obras como As Cores Avessas de Frida Kahlo (2010) e O Som que se faz debaixo d’água (2016)[9]; o Cruor Arte Contemporânea (UFRN) com uma montagem de instaurações cênicas intitulada Carmin (2012); a Bololô Cia. Cênica em obras como Na Mesa com o Bobo (2011) e o Retrato do Artista quando Coisa (2012); o Grupo Estandarte de Teatro com a obra Uma coisa que não tem nome; a Cia. Gira Dança com a obra Proibido Elefantes (2013) e Dança que Ninguém quer Ver (2015)[10]; além do trabalho da Sociedade T, onde maior parte das obras de seu repertório dialogam com a possibilidade de teatros e danças performativas. Nesse último grupo, é destacável a atuação de Pablo Vieira como performer em suas práticas contínuas como O Desembalador de Memórias, Linha Branca (2015) e Deixa eu andar com meu arco-íris (2021).
Outros artistas da performance, que viveram ou vivem em terras potiguares, continuam exercendo suas práticas na atualidade como Juão Nyn, Civone Medeiros, Carol Piñeiro, Sunsarara, Agah Precária | Natã Ferreira, David Dallas e os próprios debatedores convidados Franco Fonseca e Naara Martins[11].
Para finalizar esse texto, sem intentar encerrar a discussão, ao contrário, apresentando possibilidades de (im)permanência, é fundamental destacar a percepção que Franco Fonseca traz da performance potiguar como sendo eminentemente queer - ou seria cuir, para pensar ainda em nossa localização geográfica, no cu desse elefante que é nosso estado; onde as corpas dissidentes, LGBTQIA+, pretos, pretas, indígenas e periféricas são aquelas que mais tem movido a performance no estado, mesmo que esses movimentos encarem retaliações e êxodos forçados diante do contrafluxo conservador que insiste em fincar nessas terras. Essa compreensão e afirmação, reposiciona nossas práticas e localiza os contextos em que criamos, para que os termos e conceituações arriscados sejam condizentes com as trajetórias que vêm sendo produzidas ao invés de repetir ou ser validada por estruturas externas a nós. Retomo o termo de Franco Fonseca ao sinalizar que sofremos com uma “amnésia sustentada”. A quem interessa essa sustentação? Quais mecanismos, estratégias, fugas, dunas ou proposições são possíveis para reverter essas lógicas para que haja mais “memórias sustentadas”? O fim do debate recupera práticas antigas, humanas e tão potentes como a cultura oral, a escrita e suas pedagogias como formas de encontro, de compartilhamento e de afetação dos corpos, fazendo reavivar latências e urgências naqueles que se desafiam no mundo enquanto existência e poética de si.
[1] Para citar alguns nomes de pesquisadores e pesquisadoras que publicaram textos e pesquisas sobre a arte da performance, podemos elencar: Renato Cohen, Roselee Goldberg, Diana Taylor, Zeca Ligiéro, Tania Alice, Victor Turner, Jussara Setenta, Richard Schechner, Paul Zumthor e John Austin.
[2] Projeto realizado com recursos da Lei Aldir Blanc Rio Grande do Norte, Fundação José Augusto, Governo do Estado do Rio Grande do Norte, Secretaria Especial de Cultura, Ministério do Turismo e Governo Federal.
[3] Diogo Spinelli é integrante do Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare (Natal/RN), no qual atua e dirige, e é cofundador e crítico do Farofa Crítica (Natal/RN).
[4] Franco Fonseca é bicha potyguar, ator, performer e Arte Educador, graduado em teatro e mestre em Artes cênicas, investiga as interfaces da aids nas artes da cena desde 2015, refletindo sobre os processos criativos de artistas que vivem com hiv no Brasil.
[5] Naara Martins é escrevivente, educadora e pesquisadora, onde desenvolve estudo nas áreas de performance, dança, teatro (atuação e dramaturgia). Pesquisa sobre negritude, africanidades, literaturas e produções artísticas negras, a partir da noção de sua autoria intitulada de Poéticas Pretas. É licenciada em Teatro pela UFRN e mestra em Artes Cênicas (PPGArC/UFRN).
[6] Debate realizado com os artistas e pesquisadores Alexandre Américo e Ana Cláudia Albano no dia 16 de janeiro de 2021, através de transmissão ao vivo pelo canal no youtube do Farofa Crítica.
[7] Acessar em https://www.youtube.com/watch?v=EPF3gTRhpB4&feature=emb_logo
[8] Para saber mais sobre esse evento, indicamos o documentário “Perfoda-se: um documentário sobre performance arte” disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MxsVk0CcTos&t=2s. Além da dissertação de mestrado de André Bezerra intitulada “Circuito Regional de Performance BodeArte: encontros, coletividade e porítica na performance do Rio Grande do Norte”, orientada pela Prof. Dra.a Naira Ciotti e defendida no ano de 2014 no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRN.
[9] Heloísa Sousa e Diogo Spinelli publicaram críticas sobre essa obra no site do Farofa Crítica.
[10] Heloísa Sousa publicou a crítica “Quem tem medo do bando?” no site do Farofa Crítica sobre essa obra.
[11] Veja mais sobre as performances e pesquisas de Naara Martins no relato de processo publicado pela autora neste dossiê.