Por Ronildo Nóbrega
12/07/2021
Corpo Desabrigo, exposição de André Chacon e Pablo Vieira, tece correspondências entre o abandono do espaço e a nudez programática do corpo
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Em 30 de novembro de 2019, estreava, na galeria do espaço Margem Hub de Fotografia, um recém-inaugurado espaço de apreciação, difusão e aprendizagem em torno da imagem da cidade de Natal, Rio Grande do Norte, a exposição Corpo Desabrigo. Registro de uma deriva fotoperformática por espaços abandonados da capital potiguar, as imagens da exposição orquestram um diálogo entre corpo e arquitetura para afirmar a ruína como um lugar de potência para existir. Pouco mais de um ano após a sua estreia a exposição retornou, agora em formato digital e em um mundo que experimenta os traumas coletivos de uma pandemia global, para afirmar as suas imagens como uma tentativa de compor o entulho.
Na série fotográfica de Pablo e Chacon, o paralelo criado entre o espaço colapsado (claramente desvelado de sua camada utilitária) e o corpo despido propõe ao espectador repensar, através do olhar, a ruína. São os critérios fotográficos, sobretudo, os responsáveis por construir esse espelhamento entre o desabrigo do espaço e do corpo, assim como suas respectivas camadas de significação. Os enquadramentos, marcados por uma distância relativamente curta em relação às ações fotografadas, privatiza a relação corpo-arquitetura enquanto os ângulos e focos escrevem de modo sutil o direcionamento do nosso olhar.
Essas escolhas, ao mesmo tempo em que deslocam essa relação do espaço concreto da urbe (os planos, por exemplo, deslocalizam e desidentificam os elementos da cidade), são responsáveis por realizar o ápice da construção poética de Corpo Desabrigo; quando o performer, apenas com um sapato nos pés, abraça os restos de uma janela; ou quando parece se desmanchar numa escadaria encardida de um espaço não-identificável ou, ainda, quando se integra e se confunde com restos de madeira (provavelmente, daquilo que sobrou um armário). O que essas imagens possuem em comum é a sensação de um completo desejo de atravessar o abandono, de tornar-se chão, de existir enquanto ruína.
Diferente daquelas imagens em que a relação corpo-arquitetura aparece numa densidade figurativa quase abusiva (estas imagens em específico parecem querer reduzir o trabalho a uma espécie de exploração de backgrounds desabados, um palco para o desenrolar de um ensaio fotográfico estilo soft porn), o registro de um gesto indiscernível reluz a ruína (tanto do espaço quanto a do corpo, revelada em sua nudez) como aquilo que resiste à demolição.
Na perspectiva condensada nessas imagens, a ruína é, ao mesmo tempo, aquilo que resta – os escombros, a última camada perceptível de alguma coisa – e aquilo que pulsa (e que, portanto, reivindica a sua existência, a possibilidade de um existir diferente). Duplo colapso. Entre destroços e paredes corroídas, entre espaços que por algum motivo perderam a sua áurea funcional e utilitária, o corpo põe-se implodido de uma de suas primeiras convenções sociais, a roupa – talvez, um dos primeiros signos responsáveis pela construção da identidade masculina.
No ponto de ebulição da exposição, isto é, naquele momento em que as imagens simplesmente borram as fronteiras entre o abandono dos espaços e das convenções sociais, os signos presentes se chocam e ampliam as possibilidades de leitura da obra. É assim, então, nesse diálogo improvável, que a ruína é desprogramada. É desse modo que ela deixa de se apresentar como a falência de uma estrutura para se tornar ela mesma fonte de criação. O desabrigo, que equivale aqui a ruína, é a possibilidade de tornar-se outro, algo diferente do estado anterior à demolição. Em outras palavras, o que resta de uma implosão, seja do espaço concreto ou da arquitetura do corpo, é sempre a possibilidade de transformação daquilo que resta/permanece.
Não é novidade o uso de arquiteturas abandonadas como suporte de atividades artística. Nesse sentido, Corpo Desabrigo chega a realizar uma citação direta ao trabalho fotográfico de Francesca Woodman, artista americana que se autorretratou obsessivamente antes de cometer suicídio ao pular de um edifício no bairro do East Side em 1981. Como Woodman, os artistas potiguares investigam a relação tríplice entre a câmera, o corpo e o espaço e exploraram, nesse ínterim, o potencial linguístico do abandono. Entretanto, há algo de novo nessas imagens e este algo é, certamente, o modo como essa relação abre outras matizes de interpretação em torno da construção da masculinidade. Na série quase infindável de imagens de Pablo e Chacon – umas bem diferentes das outras, diga-se de passagem – o masculino aparece mergulhado em uma zona de instabilidade. Quando não flerta com a pornografia softcore (e este é um risco que todos nós corremos ao clicar um corpo explorando e existindo em sua nudez), a deriva fotoperformática coloca, através de camadas sutis, uma masculinidade díspar, distante de seus signos convencionais.
Essas imagens representam, quase sempre, um corpo masculino por detrás, como que orgulhoso de suas nádegas, corpo este igualmente orgulhoso por se desfazer, através da tecnologia fotográfica, da grande prótese que compõe a masculinidade; o pênis. Como se não bastasse despir-se (e a roupa, é importante salientar, é uma das tecnologias de gênero responsáveis pela construção social da masculinidade), negar o pênis significa livrar-se de certas camadas de significado e associar-se a outras, mais abertas, instáveis e, portanto, impassíveis de leituras conclusivas.
É desse modo que Corpo Desabrigo realiza uma composição com aquilo que sobra (do espaço, mas também do corpo) para escrever o desabrigo/a ruína como uma zona de indiscernibilidade que transforma escombros (de concreto, mas sobretudo de carne e de osso) em possibilidade para recompor-se, refazer-se. Metáfora potente para encarar o trauma coletivo que tem sido provocado pela pandemia de coronavírus.
Foto da capa: André Chacon, pertencente à exposição Corpo Desabrigo, .