Por José Elias Avelino
13/07/2021
Resumo: Este trabalho pretende compartilhar o processo teatral experienciado pelo então grupo O Borná de Teatro da cidade de Assú, no interior do Rio Grande do Norte, durante o período de 13 meses, que culminou na montagem da peça de teatro Ao Pó Num de Sábado, e no desenvolvimento de um processo coletivo de direção teatral. O processo coletivo iniciou-se ainda no ano de 2014 e culminou na estreia da peça em 2015. Contudo, o que aqui levanto é o Teatro-Processo, a construção, os métodos e não, necessariamente, os “resultados”.
Palavras-chave: Teatro; Processo coletivo; Ao pó num dia de sábado.
INTRODUÇÃO
Imagem 01 - Processo de construção das cenas da peça "Ao pó num dia de sábado".
Fonte: José Elias Avelino, 2014.
Pretendo descrever o processo que culminou na montagem da peça de teatro Ao Pó Num dia de Sábado, livremente inspirada nos textos Entre quatro paredes, de Jean Paul Sartre e Esperando Godot de Samuel Beckett e de como construímos um texto teatral a partir de experimentações cênicas e jogos de improvisação estruturados no entendimento do fazer teatral enquanto espaço de artesania coletiva de horizontes partilhados.
Sobre o trabalho teatral construído em coletivos e grupos, Odette Aslan no livro O ator do século XX (1994), iniciando o capítulo sobre o teatro laboratório, define que:
A noção de “companhia” que fora maculada com um sentido comercial retoma o seu valor de associação de companheiros, de coletivo de trabalho. O grupo de teatro é ao mesmo tempo um grupo de homens que têm a mesma ideologia e se unem numa busca comum (ASLAN,1994, p. 279).
Nosso grupo de teatro buscou experienciar os caminhos possíveis para a construção de uma peça de teatro nordestina, mas procuramos na medida do possível, nos desvencilharmos do regionalismo estereotipado que, por vezes, vem a castrar ou delinear uma estética nordestina. Felizmente, esse percurso nos conduziu até a aplicação de um método coletivo de direção, edificado em torno da utilização de câmeras e celulares, com a pretenciosa finalidade de substituir o olhar do diretor por uma perspectiva coletiva da artesania teatral.
Considero imprescindível estabelecer o recorte geográfico e afetivo de onde se enunciou o nosso discurso. Geograficamente, todos os integrantes do grupo, são residentes da cidade de Assú, interior do Rio Grande do Norte, tendo como prática artística o teatro de rua, feito “amadoramente” em praças, becos vielas, logradouros e festas de padroeiros da cidade. Essa era a característica de todos os membros participantes do grupo e automaticamente, da referida peça.
É importante pontuarmos que Assú não é uma cidade marcada por uma cena teatral profissional, com algumas raras exceções, como o caso de Shicó[1] do Mamulengo que foi indicado em 2012 para o prêmio Shell de Teatro, na categoria de figurino, por Macbeth.
No livro A história do teatro no Assú (1972), Francisco Amorim pontua a existência de companhias e agremiações que realizavam encenações teatrais na cidade, desde o final do século XVIII, em festividades religiosas e mais recentemente em outras atividades como o escotismo, por exemplo. Mesmo que a presença do teatro profissional na cidade estivesse a cargo das companhias que visitavam a cidade para apresentarem os seus trabalhos, os grupos locais também imprimiram suas marcas na História.
De fato, as dificuldades da cena cultural de Assú continuam sendo diversas, no entanto, os grupos de teatro continuam existindo e edificando espaços de resistência e construção de sentidos. A critério de exemplo, todos os integrantes do nosso grupo já haviam participado de algum dos vários grupos de teatro da cidade; Teatrália, Grupo Cactus, Dramact, Grupo Chico Daniel, entre outros.
E foi com a finalidade de buscar qualificação teórica e metodológica, a partir do contato com alguns clássicos do teatro mundial que decidimos trilhar uma série de percursos de leituras dramáticas. As leituras foram costuradas por experimentações cênicas, jogos dramáticos, laboratórios e jogos de improvisos. Mas foi exatamente a utilização de câmeras para registrar os improvisos que forneceu as bases para a peça que surgiu ao final do processo. A peça enquanto construção total, pois os textos, bem como as movimentações de cena, se davam de forma coletiva, de modo que nem sempre a fala ou o gestual de uma personagem, seria correspondente, podendo ser absorvido para a outra personagem e vice-versa.
O período de experimentação do nosso coletivo de trabalho durou aproximadamente 13 meses, entre leituras, laboratórios, ensaios e experimentos cênicos, realizados três vezes por semana (segunda, quarta e sexta), e nos últimos meses, também aos sábados e domingos.
O fato da cena teatral e cultural da cidade de Assú oscilar em demasia, se assemelha ao que ocorre em muitas das pequenas e médias cidades do Brasil, e mesmo que Assú tenha sido por um longo período descrita como Atenas Norte-rio-grandense e Terra da Poesia, enquanto demarcadores de um período histórico específicos, essas alcunhas ainda fazem algum sentido, mas há décadas não reflete mais realidade cultural da cidade.
Por questão de objetividade, não me deterei na análise da complexa conjuntura cultural da cidade de Assú, mas podemos pontuar que pode ser exatamente a busca por essa identidade “perdida” que continua mobilizando muitos dos fazedores de arte da cidade a buscarem superar as precárias políticas de cultura, que tanto precarizam a produção artística e inviabilizam a existência e a continuidade dos grupos culturais, por conseguinte, a cena teatral. Por esse motivo, os grupos acabam tendo a existência encurtada, sem conseguirem alcançar o máximo dos seus potenciais. Podemos tomar como exemplo a forma como a figura dos poetas da cidade, constituem uma presença-ausência, sempre exógena à dinâmica orgânica da cidade e estando relegados aos eventos sazonais.
Isto posto, desde o início do processo, compreendemos que seria urgente imprimimos as nossas identidades, experiências pessoais e coletivas, engajamentos políticos, utopias e distopias, poesias, poemas, textos e tudo que pudéssemos utilizar para marcarmos as nossas identidades e idiossincrasias.
Definimos que a estrutura basilar do processo seria a utilização de câmera fotográfica, elementos textuais e afetivos na construção do texto e da mise en scène. Os textos de Sartre e de Beckett foram utilizados enquanto roteiro, como motes para os improvisos e situações geradoras, mas sem perder de vista a singularidade que cada pessoa poderia contribuir na construção coletiva do texto, das movimentações de cena, do figurino, música etc. Assim, os textos-base de Becktt e Sartre serviram muito mais como inspiração e motivação, do que como roteiro fixo a ser modificado e empregado ao nosso modo de fazer.
MÉTODO E TEORIA: O CAMINHO
Por questões didáticas e metodológicas, podemos sistematizar em ordem cronológica o nosso processo em cinco etapas distintas e interdependentes; I - definição dos textos que foram utilizados como inspiração para a construção do roteiro da peça; II - escolha da linha teatral que sustentaria a construção da montagem; III - aplicação de oficinas, laboratórios, jogos dramáticos, improvisos; VI - o registro fílmico da construção da mise en scène, análise e transcrição do material audiovisual; os ensaios abertos.
O texto da peça foi produzido inteiramente a partir de aplicação de jogos dramáticos e do uso de improvisações, mas foi o registro fílmico dos momentos de criação que forneceu a matéria prima que o coletivo lapidou para produzir a materialidade textual do espetáculo e orientar os procedimentos de criação.
A escolha de quais textos seriam utilizados foi marcada por algumas indagações centrais, como por exemplo: Como a nossa falta de formação acadêmica na área, impactou o nosso fazer teatral? Que tipo de teatro desejávamos vivenciar? Que limitações e habilidades estavam presentes em nossa prática teatral? Como poderíamos produzir um teatro teoricamente fundamentado? O que é fundamental para realizarmos um teatro substancial?
Provocados por essas perguntas, chegamos ao livro: O Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski (2010), onde nos deparamos exatamente com algumas das indagações que havíamos levantado, dentre elas, o que é essencial para que a epifania teatral ocorra. Grotowski pontua:
[...] Nem a mise en scéne assim entendida, nem as artes plásticas, nem enfim a palavra constitui - para nós – aquilo que é especificamente teatral, aquilo que diferencia o teatro de um quadro ou de uma escultura em movimento, ou de um livro cujo conteúdo venha ilustrado com uma série de imagens colocadas em movimento [...] O que permanece depois de ter rejeitado a filologia e as artes plásticas? O ator e o espectador. É esta a célula embrionária do teatro. Aqui nasce o elemento primário da atuação. Desnudemos o teatro – na medida em que isso seja possível – de tudo aquilo que não seja este elemento primário. (GROTOWSKI, 200, p. 87).
Como Grotowski define que é a relação entre o ator e o espectador que estabelece a epifania do acontecimento teatral, foi a partir dessa leitura, do teatro enquanto experiência entre ator e espectador, que deliberamos sobre a necessidade de afinarmos os vários elementos da peça de forma organicamente integradas: espaço cênico, adereços, figurinos, cenografia e a iluminação estariam a serviço do encontro, da relação, do ritual de partilha entre atores, atrizes e espectadores e espectadoras.
Depois que realizamos as leituras e definimos o nosso percurso teórico, partimos para a construção das cenas a partir dos improvisos. No entanto, mesmo com anos de experiências em oficinas, formações e teatro de rua, tivemos bloqueios no momento de efetivamente construirmos as cenas improvisadas.
Os improvisos estavam engessados e tendíamos a reproduzir trechos dos textos-base. Mesmo após alongamentos e aquecimentos mais prolongados, o problema permanecia. Decidimos então testar uma medida mais incisiva, buscando improvisar as cenas a partir do estado de alteração de consciência, e, para tal, recorremos à utilização de bebidas alcoólicas, em um primeiro momento. Para nossa surpresa, quando analisamos a filmagem com o resultado, compreendemos que havíamos encontrado um caminho bem promissor.
No entanto, logo após alguns poucos ensaios, o resultado não nos satisfazia mais, a nossa performance não estava mais rendendo, as cenas estavam truncadas e sem energia, os textos desconexos e fragmentados. Supomos que poderia ser o resultado da ressaca ou o mal-estar causada pelas bebidas, o indicativo do nosso baixo rendimento. Além disso, apresentávamos dificuldade até para mantermos a objetividade que buscávamos.
Como já havíamos estabelecido que nos interessava a performance criativa a partir do estado de alteração da consciência, recorremos aos jogos e aos ritos para alcançarmos o desprendimento que desejávamos. Assim, a alteração de consciência, era por vezes dada pela estafa, pelo limite dos corpos em jogos, em danças e em cena.
Em nossa jornada teórica, chegamos ainda ao Richard Schechner (2012), que nos apresenta uma tecitura que conecta a performance, jogo, ritual e performance, que muito nos interessava.
Ambos, ritual e jogo, levam as pessoas a uma “segunda realidade”, separada da vida cotidiana. Esta realidade é onde elas podem se tornar outros que não seus eus diários. Quando temporariamente se transformam ou expressam um outro, elas performam ações diferentes do que fazem na vida diária. Por isso, ritual e jogo transformam pessoas, permanente ou temporariamente. Estes são chamados de “ritos de passagem”, e alguns exemplos são: iniciações, casamentos e funerais. No jogo, as transformações são temporárias, limitadas pelas regras do jogo (SCHECHNER, 2012, p. 50).
Era exatamente essa “segunda realidade” que nos interessava. A partir desse momento, os improvisos eram sempre realizados depois que estávamos exauridos, logo após a aplicação de exercícios do alfabeto do corpo, e o resultado era muito promissor.
A rotina de ensaios do coletivo de trabalho era composta por: Alongamento e aquecimento; exercícios do alfabeto do corpo; improviso e filmagem das cenas e análise e transcrição dos diálogos filmados. Cada alteração estrutural que realizávamos no texto, chamávamos de tratamento (Tratamento 1, 2, 3...); até o final do processo tivemos 15 tratamentos.
Quando tínhamos dúvida se alguma coisa estava funcionando ou não na montagem, recorríamos prontamente ao material audiovisual disponível. Isso evitava que perdêssemos tempo com discursões abstratas, já que todos podiam argumentar objetivamente com base na materialidade dos vídeos.
Ao concluirmos o processo, havíamos construído a peça (textos, cenas, músicas, movimentação...) utilizando apenas um foco de luz sob nossas cabeças e um tapete branco com quatro metros quadrados e os espectadores dispostos circularmente.
A peça foi erguida em três atos. Como era um dos nossos objetivos basilares substancializar a nossa relação com os espectadores, ao final de cada ato construído, realizamos ensaios abertos, com a finalidade de aferirmos os resultados e analisarmos se as nossas escolhas estavam efetivamente funcionando em cena. Ao término da apresentação, abríamos o espaço para uma roda de conversa sobre o processo coletivo e foi a partir dessa troca com os espectadores, da captura de impressões e leituras possíveis sobre a montagem que conduzimos o processo até o final.
Essa etapa, em nosso entendimento, nos ajudaria a complementar, “substituir” o olhar do diretor que buscávamos construir de forma coletiva, já que teríamos, a partir do “olhar” das câmeras e os nossos vários olhares, além do feedback dos espectadores, conseguido complexificar o nosso trabalho, obtendo assim, como resultado final, a transubstanciação de todos os esforços em uma terceira “coisa” que nominamos de Ao Pó Num Dia de Sábado.
Imagem 02 - Primeiro cartaz da peça "Ao pó num dia de sábado".
Acervo do autor. Fonte; José Elias Avelino, 2014.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando iniciamos a montagem da peça Ao pó num dia de sábado, desejávamos, construir uma vivência teatral substancial e artisticamente comprometida com o teatro, tanto embasado teoricamente, quanto engajado politicamente. Durante o nosso percurso, fomos surpreendidos diversas vezes, seja com a aplicação de técnicas que não funcionaram como esperávamos, seja em relação às idiossincrasias do elenco ou às dificuldades e vantagens do local de trabalho que utilizamos como espaço laboratório.
Dentre as várias perguntas que motivaram o nosso processo de construção, nos indagávamos, por exemplo, como a ausência de formação acadêmica na área impactava o nosso fazer teatral. Podemos supor que para a prática teatral profissional, a formação acadêmica pode evitar e prevenir muitos problemas decorrentes da aplicação equivocada de exercícios e atividades que podem prejudicar as ferramentas de trabalho do ator, como a voz e o corpo.
Além, disso, o saber teórico, metodológico e técnico proporcionado pela academia são ferramentais eficazes na aplicação prática da atividade profissional, além de representar um ganho de tempo, tanto na aplicação dos processos de criação quanto as possibilidades de repertórios e a capacidade de fundamentar, substancialmente, as produções.
Já sobre a questão do teatro amador versus teatro profissional, podemos considerar, a partir da nossa prática teatral, que um dos pontos centrais é a falta de investimento e a pífia valorização dos fazedores de arte dos pequenos lugares, já que recurso humano qualificado temos em demasia e é evidente a seriedade e o compromisso como os atores e atrizes conduzem suas práticas teatrais. Podemos inferir que uma política pública de cultura que viabilizasse a manutenção dos grupos de teatro e possibilitasse que os artistas pudessem se dedicar à produção dos seus trabalhos ajudaria a consolidar a cena cultural profissional que é o anseio de tantos fazedores de arte de Assú e do Brasil.
REFERÊNCIAS
ASLAN, Odete. O ator do XX: evolução da técnica, problema da ética: Trad. Araújo de Batista Fuser e J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2007.
FLASZEN, Ludwik (curad.); BARBA, Eugenio (text.). O teatro laboratório de Jerzy Grotowski: 1959-1969. 2. ed. São Paulo, SP: Perspectiva: SESC (São Paulo), 2010.
LIGIÉRO, Zeca (Org.). Performance e antropologia de Richard Schechner. Trad. Augusto Rodrigues da Silva Junior. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012.
Foto da capa: Acervo pessoal de José Elias Avelino.
[1] No período Shicó do Mamulengo era um dos diretores do grupo, no entanto, não acompanhou esse processo, pois estava produzindo cenário e figurino do Grupo Galpão.