Emboloramos: A Construção de um Monólogo Coletivo

Por Euler Lopes
13/07/2021

 

Resumo: Esse relato tem o objetivo de organizar a experiência empreendida no processo de montagem do espetáculo Bolor, do grupo de Teatro A Tua Lona de Sergipe. Entendendo que a criação teatral sergipana se dá dentro dos grupos, esse texto traz um breve panorama da história do grupo em questão, de como ele tem se articulado nos últimos dez anos e descoberto o laboratório como fonte de criação. A escrita do relatório é um exercício de registrar um processo que aconteceu em 2019, sem forçar conexões teóricas, costurando as memórias com afeto.

Palavras-chave: A Tua Lona; Bolor; Teatro de Grupo.

 

Ingredientes: duas artibichas nordestinas prontas para arrasar.

É preciso olhar para o passado para entender o que foi o processo de montagem do espetáculo Bolor, pelo Grupo de Teatro A Tua Lona. Somos um grupo de 10 anos celebrados no meio da pandemia de 2020. Produzimos teatro de forma autoral, sem que para tanto tenhamos nos formado dentro de espaços acadêmicos e/ou técnicos para as artes cênicas. Em Sergipe, o curso de teatro da UFS é recente, tendo quase o mesmo tempo de existência que o nosso coletivo; os espaços culturais são pouquíssimos, os teatros – dois - atendem as demandas comerciais, não priorizando as produções locais. Somos um dos poucos estados em que o Sesc não possui um espaço destinado às apresentações artísticas e em que com mais de 20 anos do projeto Palco Giratório, apenas quatro vezes o Estado esteve dentro da circulação – a saber, com os tradicionais grupos Imbuaça e Mamulengo do Cheiroso, ambos com mais de 40 anos de existência, com a performer e até então professora da UFS Maicyra Leão, e mais recentemente, com o Grupo Boca de Cena, com 15 anos de existência.  Não há iniciativas para área teatral promovidas pelo Sebrae, e o Sesi faz alguns raros contratos de esquetes empresariais que atendem apenas suas necessidades específicas. Desde 2007, houveram apenas dois editais de montagem teatral, um proposto pela prefeitura de Aracaju em 2008, antes da formação do nosso grupo, e outro em 2014 ofertado pelo governo do Estado, que contemplou apenas dois projetos, sendo um deles a montagem do nosso espetáculo O Conselho  que estreou em 2016.

 Pontuar essas coisas é mais do que chorar pitangas ou reproduzir um discurso de fracasso [embora euzinha ache que o fracasso/crises andam lado a lado com quem se arrisca a produzir teatro nesse país], ou desconsiderar que em tantos outros lugares há fazedores de teatro que vivem realidades similares. Trata-se mais da necessidade de localizar esse texto e a produção do espetáculo que será relatado aqui, de inserir essa produção dentro de uma grupalidade que é a única forma que temos para aprender e existir.

Dentro do grupo A Tua Lona nos formamos enquanto atores, diretores, dramaturgos, figurinistas, produtores. Aprendemos na prática do dia-a-dia e na produção de nossos espetáculos sobre estéticas que nos contemplam, temas que queremos discutir, de que forma funcionamos metodologicamente. Nesses dez anos, muitas pessoas passaram pelo nosso coletivo, e dentro dessa dinâmica que não oferece segurança nem retornos financeiros foi natural que muitos abandonassem o projeto. Apenas eu e o Cícero Júnior, ator do espetáculo, estamos desde a fundação. Somos duas artibichas sonhadoras que em 2010 queriam produzir seus próprios espetáculos. A nossa parceria ultrapassa o Grupo A Tua Lona e atravessa nossas vidas, Cícero está no que escrevo e sei que estou em seus projetos de visualidades e na sua atuação.

 Juntos, estreamos o grupo com o esquete O Vizinho do 203, cena homoafetiva que teve apenas uma apresentação dentro do Festival de Cenas Curtas (Facetas) em 2010. Com Cícero dividi o palco pela última vez no espetáculo Ela esteve Aqui entre 2013-2016, no qual interpretávamos homens cis heterossexuais casados [o passado nos condena!].  Lembro que o “elogio” recorrente quanto à sua atuação era que ele conseguia convencer na performance de “homem”. É curioso, mas até pouco tempo, era comum elogiar as bichas que conseguiam não demonstrar sua feminilidade em cena.  Talvez até nós acreditássemos que para atingir o público, precisávamos seguir uma ótica que não dizia sobre nós e sobre nossas corpas.

A partir de 2016, decidi não atuar mais em espetáculos do A Tua Lona com o intuito de exercer um olhar mais preciso por parte da encenação. É o tempo em que afirmamos a pesquisa e o laboratório como grandes pilares do grupo. Foi quando começamos a entender que a grupalidade era a nossa única escola possível.

           

Descansando a massa: uma escrita performativa

Atuo como dramaturgo desde 2010, comecei a escrever para teatro porque precisávamos ter uma história para contar nos nossos espetáculos. A vivência me colocou nesse lugar sem que dominasse técnicas e conhecesse caminhos possíveis. Entretanto, sempre gostei de escrever e uma máxima entre os escritores é que quem quer fazer da escrita um ofício, deve exercitá-la todos os dias.  Ouvi isso do contista sergipano Antônio Carlos Vianna, num evento acadêmico enquanto era graduando do curso de letras. Ele mesmo tinha o hábito de acordar cedo, caminhar, tomar um belo banho seguido de um bom café da manhã e passar horas na frente do computador escrevendo.  Dei um riso de canto de boca e pensei que nunca conseguiria tal feito. Acontece que para exercitar a escrita você precisa de tempo e a dinâmica de um jovem de classe baixa não permite isso.

Anos depois, querendo experimentar a escrita como exercício diário e nas condições mais limites possíveis, me desafiei a publicar no facebook pequenos textos que escrevia num celular galaxy pocket branco, numa série literária que batizei com o nome de bolor. A série falava sobre fracassos de relações amorosas, e tinha como mote a ideia de que depois que o amor passa, ele se transforma em bolor. Escrevia despretensiosamente dentro do ônibus, no meio da balada, quando a bateria do celular estava preste a acabar. O desejo era testar outros suportes, no caso as mídias sociais, e tensionar meu processo criativo. A brincadeira começou a repercutir na rede social e em 2017 os textos se transformaram numa publicação em formato de cartonera.

O bolor nunca teve a intenção de ser dramaturgia ou ir para os palcos. Convidei o Cícero Júnior para declamar alguns deles no lançamento do livro, mas como tudo que pensamos acaba se transformando em cena, o que era para ser uma declamação, acabou se transformando num esquete teatral.

 

Imagem 01 - Cícero Júnior em cena no lançamento da Editora Chita Cartonera.

Fonte: Felipe Gotenauer, 2017.

 

Foi no lançamento da Chita Cartonera que Cícero Júnior demonstrou o desejo de iniciarmos um processo de montagem de espetáculo a partir dos escritos do bolor. Embora muitos elementos visuais já estivessem presentes nessa etapa, como o figurino inicial, o uso do microfone, a cerveja, o projeto só veio a se realizar em 2019, por conta da nossa inscrição na I Edição da Temporada de espetáculos Adultos do Museu da Gente Sergipana. Como já dito, há uma escassez de espaços para apresentações no Estado e o Museu da Gente cede gratuitamente seu auditório, que não conta com palco ideal nem equipamento de luz adequada, para que os grupos possam estar em cartaz. Inscrevemos nossa proposta e com a aprovação, tivemos cerca de 5 meses para montar o espetáculo.

 

Mãos na massa: vivendo personas.

O primeiro impasse que tivemos foi como transformar o material literário em uma dramaturgia. Embora dentro do mesmo universo, os textos do bolor não apresentavam nenhuma linha dramatúrgica. Foi pensando nisso e já com vistas na encenação que resolvemos dividir o espetáculo em 5 personas, que nomeamos como a viúva, a apresentadora, o boy, a bêbada festiva, e a bêbada fim de poço, além da presença de Cícero Júnior enquanto ator. Respectivamente essas personas significavam os processos de luto da perda amorosa; divulgação e publicização da dor causada pelo fim do relacionamento; a violência e o perigo do ressentimento; a festa enquanto tentativa de esquecer; e o álcool como caminho para o poço de onde renascemos em algum momento.

A escolha das personas nos pareceu interessante por ser uma espécie de fronteira entre nós enquanto indivíduos e uma possível criação ficcional, uma fronteira que também nos permitia brincar com as delimitações impostas pela sociedade com relação aos gêneros. Ao utilizar essas personas, acreditávamos que estávamos presentes de alguma forma, com nossas histórias e vivências amorosas que eram suscitadas pelo texto.  Durante algum tempo, o nosso trabalho foi organizar esses fragmentos dentro dos blocos das personas, num processo intuitivo de unir os fragmentos para começar a experimentar.

Nessa etapa, foi fundamental o interesse que Cícero Júnior tem demonstrado pela construção dos figurinos. Dentro dos nossos processos, o figurino tem sido algo sempre presente nos ensaios, é comum que escolhamos figurinos para os laboratórios, figurinos de transição durante a montagem, até a chegada da vestimenta que vai de fato à público. Os croquis dos figurinos nos auxiliaram nesse processo de entender que personas queríamos criar. Acredito que idealizar os figurinos e se debruçar sobre os textos dos bolores com o olhar mais dramatúrgico nos permitiu levantar a ideia do espetáculo.

 

Imagem 02 - Croquis dos figurinos idealizados pelo ator e figurinista Cícero Júnior.

   

Fonte; Cícero Júnior, 2019.

 

Um elemento que o Cícero trouxe na construção dos figurinos foi a imagem do sagrado coração de jesus, que ia aos poucos se curando com o transcorrer do espetáculo. Os figurinos foram pensados na cor preta com a interferência de bordados vermelhos. A metáfora do bordado é uma referência a própria tessitura dos bolores, ponto de partida para o espetáculo

Outra coisa interessante que surgiu durante o processo foi a criação de uma playlist pública que solicitamos aos amigos que colocassem suas músicas de bads amorosas. O espetáculo, inclusive, começa com canções dessa playlist, que são executadas enquanto as pessoas pegam suas cervejas e se acomodam. A playlist do espetáculo está disponível na plataforma Spotify no link:  https://open.spotify.com/playlist/4TGrkGYfdjCprgivyiHwSb?si=j43cAhSyQha7Pz8_1SYzQw

Com o roteiro levantado começamos a pensar as cenas. Embora já tivéssemos costurado os bolores em blocos, ainda tínhamos um material muito fragmentado, então, decidimos experimentar núcleos de pequenas cenas, como fotografias de cada bloco. Avançávamos lentamente e sempre recomeçávamos do início para memorizar as partituras das quais gostávamos. A costura/bordado que esteve nas etapas de pensar a dramaturgia, que se ressignificou nos figurinos, também esteve presente no movimento da encenação.

Como elementos criadores, além do figurino base, utilizamos um microfone com pedestal, uma mesa de bar, o bastidor do bordado, saltos alto, cervejas, entre outras coisas. À medida que o espetáculo crescia e os figurinos iam se materializando, íamos incorporando mais coisas.

Com a persona da viúva, traçamos paralelo com o sagrado, como numa partitura em que Cícero reproduz as imagens de santas católicas enquanto fala. Trabalhando com o aspecto místico também criamos cenas em que a Viúva conversa com a lua, ou é atacada por corvos a la Hitchcock. Percebemos que há um tom de mistério e de morte nesse bloco e trabalhamos com esses sentimentos durante a construção dessa etapa.

Para a apresentadora, brincamos com a interatividade e com as representações  midiáticas. É desse bloco cenas em que se dança Conga la Conga da Gretchen, em que  Cícero vai até o público e entrevista algumas pessoas da plateia, em que fazemos uma ligação para alguém fora do estado ou do país enquanto o público ouve a reação do outro lado da linha. Há também cenas em que simulamos um programa culinário, uma radionovela e um strip-tease.

 

Imagem 03 - Personas da Viúva (à esquerda) e da Apresentadora (à direita).

 

Fonte: Diego DiSouza, 2019.

 

Com a persona do boy, buscamos representar a violência e a fragilidade, criamos cenas no escuro, brincamos com sonoridades, improvisamos até mesmo um rap. Nesse momento, procuramos representar outro tipo de corpo numa tentativa de desterritorializar o espaço, flertando com o perigo e com o abjeto. Durante todo esse bloco, o capuz do casaco que Cícero Júnior usa impede que ele veja nitidamente, o que proporciona outra maneira de interagir com a espacialidade.

Com a persona da bêbada festiva, dilatamos a interação com a bebida, na qual Cícero vira uma garrafa de cerveja, e tem que caminhar segurando várias dela. Nesse momento, rememoramos o carnaval, e utilizamos a saia de tule para criar cenas em que Cícero desaparece e aparece dentro dela. Na persona da bêbada fim do poço, representamos o ápice da bebedeira, na qual utilizamos quedas, choques e uma interação incômoda com o público. É após esse momento que Cícero se despe e volta a  assumir a sua própria identidade. É Cícero-indivíduo que finaliza o espetáculo agradecendo ao trabalho coletivo, que é a cura para todo mal.

 

Imagem 04 - Personas do Boy (à esquerda), bêbada festiva (centro) e bêbada fim do poço (à direita).

   

Imagens do ensaio. Fonte: Elisa Lemos, 2019. 

 

Uma grande questão em nossos ensaios foi o espaço do auditório do museu, que além de muito pequeno, no seu canto esquerdo há uma escada que o recorta.  Optamos por assumir a espacialidade do local, criando cenas a partir do que tínhamos, então ocupamos os corredores, os intervalos entre as poltronas, a escada, as laterais. Tendo em vista a falta de espaços e pensando na vida útil do espetáculo, decidimos que ele se adaptaria aos lugares que surgissem para apresentação.

No processo e com a ideia das personas como disparadores da encenação, percebemos que a presença do “diretor” também criava uma partitura que gostaríamos de deixar visível ao público. Acreditamos na posição do diretor como um orientador da cena, como propositor em consonância com o ator, e em certo momento, tivemos o desejo de que na encenação, essa relação de cuidado e comunicação entre ator e público e ator e produção estivesse à mostra. Foi dessa forma que surgiu a persona da Princesona, que assiste ao espetáculo como uma anfitriã daquela casa/bar. É ela quem recebe o público, distribui as cervejas, leva alguns elementos de cena, auxilia na troca de figurino enquanto dança, entre outras coisas. De forma discreta, a Princesona,  minha persona, age como um guia, auxiliando o ator nas movimentações, cuidando dele durante todo o espetáculo. A Princesona desconstrói a presença austera que o diretor muitas vezes assume nas apresentações, uma presença que costuma se revelar apenas no fim da sessão.

Como estratégia de remeter ao livro, também propusemos antes de cada apresentação a performance Embolore, onde o público chegava um pouco antes e podia se consultar com a Princesona. Cada um de uma vez, eles traziam sua música de fossa e contavam sua história amorosa e a Princesona transformava a memória de dor num pequeno texto literário, um bolor que servia como souvenir. Entre oito e dez bolores eram criados em cada dia de apresentação e aqueles que participavam da performance tinham acesso ao processo de escrita que gerou o livro e posteriormente, serviu ao espetáculo.

Foi primordial a presença de Diandra Xavier e Pedro Cazoy, componentes do Grupo A Tua Lona que assumiram a produção tanto nos ensaios como nas apresentações, além de operarem som e luz. A trilha sonora inédita foi composta por Danilo Duarte e Dryzinha, a cenografia é de nossa parceira Laura Bezerra e a iluminação de Denys Leão.

 

Repartir o pão: as apresentações.

O espetáculo Bolor ficou em temporada nas quintas-feiras do mês de novembro de 2019. Foram 4 apresentações num espaço que comportava 100 pessoas. Lotamos as duas últimas apresentações com público pagante, e a menor quantidade de pessoas assistindo foi de 35 espectadores numa noite de estreia do tradicional Festival de Artes de São Cristovão, que costuma esvaziar a cidade.

Bolor tem duração de 1h30 minutos, além da 1h de performance literária com a Princesona que acontece antes do início oficial do espetáculo. A maior parte do nosso público foi composto por pessoas que não eram da classe artística, e o espetáculo teve como maior divulgação o boca-a-boca. Era comum ver algumas pessoas que foram mais de uma vez nas apresentações e o retorno da bilheteria nos fez pensar que mesmo de forma ainda incipiente, acessar o público e fazer com que ele sustente o espetáculo é um caminho viável.

Bolor foi financiado por um rifa, pequenas doações e uma parte do dinheiro que eu investi. Os gastos foram em média de 5 mil reais, e com as quatro apresentações conseguimos recuperar uma boa quantia desse dinheiro. O espetáculo Bolor tem uma dívida de R$1.800,00 comigo mesmo, que não foi sanada pela suspensão de nossas atividades por conta do isolamento social devido à Covid-19

Embora seja um monólogo, entendemos que qualquer espetáculo proposto por um grupo se dá de forma coletiva. Além do ator Cícero Júnior, da presença da Princesona (eu), de Diandra Xavier e Pedro Cazoy na produção  por conta das várias atividades que o espetáculo demandou - venda de ingressos e livros,  venda das cervejas e fichas, organização da performance Embolore -,  recorremos a mais três pessoas do grupo que nos ajudavam nos dias de apresentação. Nos agradecimentos, Cícero as batizou com um apelido, uma forma de remeter às personas. O espetáculo só existe também por conta delas, Elisa Presnsadinha, Tereza Tomba-Carro, Cabelinho (Pedro Cazoy), Di Pilequinho (Diandra Xavier) e Lara Risadinha.

O espetáculo Bolor ressignificou a nossa prática e oxigenou o trabalho que eu e Cícero Júnior estamos construindo há dez anos. Com ele, confirmamos a certeza de que queremos produzir um teatro que dialogue com nossas corpas e (re)existências. Um teatro que é bicha e nordestine, um teatro que não conhece as técnicas e aprende na prática, um teatro em que não sabemos ser só. Bolor é um espetáculo feito para doer, que nos curou do fracasso.

 

Foto da capa: Bolor. Foto de Elisa Lemos.

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