Editorial

Por Diogo Spinelli e Heloísa Sousa
18/07/2021

A segunda edição da Revista Farofa Crítica traz como tema o Dossiê CORPO-DOCUMENTO CORPO-CIDADE CIDADE-DOCUMENTO. São artigos e relatos de processo, além de uma seção especial dedicada à exposição Corpo Desabrigo (2019) da Sociedade T, que investigam e relatam práticas artísticas realizadas por coletivos e artistas da região Nordeste cujas obras tangenciam as questões relativas aos binômios estabelecidos como eixo norteador desta edição. 

Importante mencionar que estes textos foram originalmente submetidos na convocatória para a primeira edição da Revista, cujo Dossiê tinha como tema Cenas e Visualidades. Como na ocasião recebemos um grande volume de submissões de nosso interesse, resolvemos dividir os textos selecionados entre as duas edições. Isso ocasionou uma disparidade entre a relação do número de autores e de autoras, havendo apenas a presença da pesquisadora Tainá Macedo como mulher autora colaborando com esta segunda edição. Importante pontuar esse quadro, para destacar que a Revista Farofa Crítica se pretende uma publicação que afirme a diversidade entre seus colaboradores não apenas apresentada nos textos, práticas e pensamentos, mas também nas diversas vivências de corpos e trajetórias. Dessa forma, as edições seguintes estarão atentas a pontuar essa multiplicidade em seu sumário. Mencionamos ainda que, diferentemente de nossa edição inaugural, esse número é realizado de forma totalmente independente, sem quaisquer patrocínios ou incentivos. 

Essa é uma realidade que se prolonga por muitos anos, desde o lançamento do site do Farofa Crítica, onde mais de cem textos críticos encontram-se publicados, sem que houvesse remuneração por parte de seus autores e autoras, à exceção de pontuais festivais de teatro e dança fora do estado do Rio Grande do Norte, com os quais tivemos a oportunidade de estabelecer parcerias. Isso ressalta que ainda há caminhos a serem trilhados na busca por uma crescente valorização da atividade crítica como atividade artística fundamental na articulação de saberes sobre a arte, de registros históricos, produção de memórias e formação de plateias. O Farofa Crítica vem se apresentando como espaço resistente nessa atividade, fomentando a formação de outros críticos e críticas no estado e fora dele, reivindicando outros olhares para essa atividade profissional. 

Abrindo essa edição, temos o artigo de Reginaldo Oliveira (AL) sobre o processo de criação da obra Encontros (2010), da Cia dos Pés, companhia de dança do estado de Alagoas fundada nos anos 2000. Amparado pelas teorias de Jorge Larrosa Bondía e Walter Benjamin, o autor – que também é integrante da companhia – relata de que forma o trabalho desenvolvido pelo coletivo alagoano preza por “corpos ideias”, fazendo com que as obras da companhia levem em consideração os corpos, as vivências e experiências dos dançarinos, que passam a ser coautores de suas criações.

Em seguida, há o artigo O Teatro Documental do Grupo Carmin: Uma Trajetória entre o Fato, a Ficção e o Audiovisual, de Ivan de Melo (SP). Nele, o autor passa em revista a trajetória do grupo potiguar, investigando de que maneiras o teatro documental passou a ser uma das principais características do teatro realizado pelo coletivo. Permeado por trechos de entrevistas com os integrantes do Grupo Carmin, o artigo traça um panorama sobre as obras do coletivo desde Pobres de Marré (2007) até seu processo mais recente, Gente de Classe.

Os cinco textos que se seguem nesta edição são relatos de processos trazidos por artistas e pesquisadores do Rio Grande do Norte, Sergipe e Paraíba, sobre a criação de obras em diferentes grupos e contextos, trazendo panoramas que revelam sobre os desejos de criação, estratégias de resistência pela coletividade e elaborações estéticas. Os relatos de processo não são apenas descrições de etapas, mas registros de um percurso de encontros, escolhas e atravessamentos que pontuam o fazer artístico como prática laboral.

Em Teatro Processo na Terra da Poesia: A Construção Coletiva da Peça “Ao Pó num Dia de Sábado” de José Elias Avelino (RN), encontramos o relato de um processo de criação vivido pelo grupo O Borná de Teatro da cidade de Assú no interior do Rio Grande do Norte. O texto cruza referências que trazem à tona registros da história do teatro na cidade potiguar, descentralizando as narrativas que costumam pontuar como histórico apenas as atividades da capital. A presença do texto de Avelino nesta edição traz para a Revista esse desejo de publicar sobre outras experiências que afirmam a diversidade e existência de práticas teatrais potiguares em outros espaços para além de Natal. Esse relato revela a coletividade como estratégia criativa, processual e que marca as formas possíveis de agrupamentos que desejem o teatro enquanto experiência estética. 

Em Anáguas: Desnudando as Mulheres de Lourdes Ramalho, a figurinista, professora e pesquisadora Tainá Macêdo (PB) traz o relato de criação da obra Anáguas pela Cia. Oxente (PB) sob a ótica de uma figurinista. Com descrições precisas dos figurinos e das escolhas de cores, texturas e formas que compunham as aparências dos corpos das atrizes em cena, a autora vai rememorando reencontros, histórias e políticas do grupo ao tentar traçar essa narrativa no teatro. Em uma escrita fluida e acessível, Macêdo torna legível as experiências possíveis em um processo criativo que extrapola os ensaios como passagens técnicas e move outras camadas afetivas do sujeito em coletividade.

Destacando a impossibilidade de falar sobre processos criativos sem recuperar trajetórias e posicionamentos, como já é explícito nos dois relatos anteriores, Euler Lopes nos traz o texto Emboloramos: A Construção de um Monólogo Coletivo. O dramaturgo e pesquisador relata sobre a criação de Bolor do Grupo A Tua Lona (SE) que comemorou dez anos de existência em 2020. Em um relato afetivo e implicado, nós, leitores, somos conduzidos pelo autor em uma breve jornada de experiências do grupo, até chegar em algumas ações performativas criadas por Lopes que, com simplicidade, vão ganhando potências e catarses no encontro com o público, evocando as formas mais intensas de sentir os afetos. Repito, afetos. Palavra essa que é tão cara a vários artistas e que compõe a poética do dramaturgo sergipano entre uma tomada política, cuir e qui-tchi, para fazer uma análise crítica da obra relatada e roubar das habilidades próprias do autor em questão, em popularizar as palavras como ato subversivo.

Os outros dois relatos que finalizam essa seção dialogam com as Artes Visuais. Em Relatos de uns Corres para Construção da Performance-Instalação “O Corredor” de David Dallas (RN), o autor traz um resumo de sua pesquisa para conclusão do curso de Licenciatura em Teatro na UFRN. Em um texto preciso e intermidiático, o autor cruza relatos que vão desde as ideias iniciais para a obra, até a escolha dos materiais técnicos usados, compondo também com as filosofias possíveis para se pensar esse corredor. É destacável a habilidade de Dallas em desenvolver um relato técnico e poético simultaneamente, que traz ao leitor dimensões de ritmos, frenesis e loopings condizentes com essa obra.

Enquanto isso, Ygor Anário nos traz o texto Mineração 1 ou Rio Potengi em Baixa Resolução onde relata o processo de criação da composição imagética que leva o título do texto. Com uma articulação de referências que vão de Ailton Krenak aos autores de teorias da imagem midiática, Anário avalia o uso de plataformas digitais como compositores de imaginários e práticas políticas e sociais. Em uma atitude de profanação digna das conceituações trazidas pelo filósofo italiano Giorgio Agamben, o autor nos apresenta uma sequência de obras potentes acompanhadas de uma articulação de pensamento que nos conduz a uma reconfiguração do olhar mediado pelas virtualidades, quase compondo um inception de mediações que não explica algo, mas torna visível camadas de manipulação que tornamos automáticas. 

Por fim, encerramos essa edição com uma seção especial dedicada à exposição Corpo Desabrigo (2019) da Sociedade T, com fotografias de André Chacon e performance de Pablo Vieira. A série fotográfica criada apresenta outras facetas do grupo que vem se compondo como articuladores de práticas nas artes da cena, visuais e documentais com iniciativas carregadas de posicionamentos sobre gênero, violências, espaços e temporalidades. Nesta série, performer e fotógrafo buscam espaços abandonados na cidade do Natal para posicionar o corpo, dançar nos destroços, em composições urbanas que revelam a deterioração daquilo que poderia ter sido ou já foi; fundindo corpo e arquitetura entre a diluição da identidade e as pulsões dos (in)orgânicos. 

Sobre Corpo Desabrigo, recebemos o texto de Pablo Vieira relatando seu processo em Diário do Performer: Reflexões sobre Corpo Desabrigo com uma abordagem fortemente poética misturada às fluências descritivas e sensoriais de um diário. Aqui a escrita é registro do que se sente, do que atravessa o corpo de quem cria. Em contraposição complementar (paradoxal assim mesmo) finalizamos com o texto crítico de Ronildo Nóbrega, Desprogramar a Ruína, onde a escrita se vale de registro daquilo que se observa, do que atravessa o corpo de quem contempla. No meio, a fotografia, fina como uma folha de papel, é fronteira porosa entre o corpo do performer materializado em tinta e que outrora estava no espaço decomposto, e o corpo do visitante da exposição que observa o registro tornado arte, de uma composição intencional.

 

Imagem do Banner: "O menino sozinho", André Chacon, 2019.

Acesse os artigos da segunda edição da Revista Farofa Crítica - Dossiê "Corpo-Documento, Documento-Cidade, Cidade-Corpo" clicando aqui, ou baixe a edição completa em PDF, abaixo.

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