Anáguas: Desnudando as Mulheres de Lourdes Ramalho

Por Tainá Macêdo Vasconcelos
18/07/2021

Resumo: Esse texto tem como objetivo relatar o processo criativo do espetáculo “Anáguas”, com texto de Lourdes Ramalho, direção de José Maciel e realização da Cia. Oxente de Atividades Culturais. A forma triangular é a base da visualidade deste espetáculo que aborda relações femininas no interior do Nordeste Brasileiro. Como figurinista inserida neste processo, apresento a rede colaborativa que sustenta esse espetáculo e evidencia a artesania inerente ao trabalho desta companhia teatral.

Palavras–chave: Anáguas; Cia. Oxente; Lourdes Ramalho; visualidade teatral; traje de cena.

 

O relato que você vai começar a ler é uma das experiências que eu vivi como figurinista e filha de pessoas de teatro. Desde criança, acompanhei meus pais nos encontros dos grupos, nos ensaios, nas turnês e apresentações. Em 2011, eu estava terminando o bacharelado em Teatro e já atuava como figurinista em João Pessoa. Neste ano, eu vi minha mãe iniciar mais um processo de montagem. Dessa vez, com José Maciel, Margarida Santos e Palmira Palhano, uma nova formação da renomada Cia. Oxente de Atividades Culturais. Logo, me aproximei, ofereci meu trabalho e passei a fazer parte desta equipe.

O espetáculo “Anáguas” estreou em setembro de 2011 e desde então seguiu em diversas temporadas, festivais e apresentações por todas as regiões brasileiras, alcançando premiações e notoriedade. O início desse processo é marcado pela amizade entre José Maciel e Lourdes Ramalho. Como ator e fundador da Cia. Oxente, Maciel sempre esteve em contato com Lourdes Ramalho, devido montagens de outros espetáculos com autoria dela. Um privilégio para ele, conviver com a maior dramaturga da nossa região na contemporaneidade.

O texto “Anáguas” chegou para Maciel em uma conversa com Dona Lourdes, na residência dela em Campina Grande (PB). Na primeira leitura, Maciel identificou a dureza do texto e a dificuldade de execução nos moldes tradicionais do palco à italiana, mesmo assim, ele pediu autorização para iniciar a montagem. Após o consentimento por parte de Dona Lourdes, ele entrou em contato com a atriz Mônica Macêdo, minha mãe, e juntos decidiram convidar as atrizes Margarida Santos e Neide Melo para darem início a esse projeto. No processo de leitura, por motivos pessoais, Neide saiu da montagem e eles convidaram a atriz Palmira Palhano, que prontamente aceitou. O elo que uniu essas atrizes foi o desejo de voltar aos palcos e sentir mais uma vez esse prazer. Há anos elas não encaravam a plateia. Atrizes reconhecidas pelos seus pares por extensa atividade teatral nas décadas de 1980 e 1990, se reencontraram para montar esse espetáculo sob a direção de Maciel.

Por sua vez, essa foi a primeira direção assinada por ele, e é notável o carinho que Maciel nutre por esse espetáculo. Também é possível perceber a vivacidade e força do ator popular, refletidas nas intenções do diretor, nos ensaios abertos frequentes e na escolha dos parceiros de equipe.

A equipe técnica foi se formando de acordo com a necessidade. Nos primeiros encontros, Maciel já tinha desenhado toda a encenação. Ele fragmentou o texto em grandes monólogos e um dialogo ao final. Posteriormente, Dona Lourdes declarou que havia guardado esse texto porque não sabia como algum diretor poderia montá-lo, tendo em vista a quantidade exaustiva de diálogos e mudanças de cenários.

Os ensaios aconteciam à noite, após os expedientes de trabalho, com leitura do texto, trabalho corporal e elementos surpresas. Uma surpresa para toda a equipe foi quando, antes das atrizes terem todo texto decorado, Maciel começou a convidar amigos e frequentadores do Núcleo de Teatro Universitário (UFPB), lugar onde aconteciam os ensaios, para participarem e emitirem opiniões ao final de cada noite. Esses espectadores foram os primeiros parceiros deste espetáculo, os olhares críticos serviram como um termômetro ao longo do processo para Maciel.

Outro desejo da direção era incluir o canto popular na encenação. Tendo isso em mente, Maciel pediu para que as atrizes cantarolassem trechos do texto de suas personagens. Elas tiveram muita dificuldade e recorreram aos amigos, profissionais da música, para obter auxílio. Palmira chamou o violonista, e também esposo dela, Marcos Fonseca, e Maciel pediu ajuda a Angélica Lacerda e ao grupo Bastianas, que ele havia coreografado anos atrás. Assim surgiram as lamentações, os aboios e os repentes que são entoados pelas atrizes em cena.

Logo no início, Maciel já havia definido que o espetáculo seria triangular e o público estaria dentro desse triângulo por onde as personagens transitariam. Os convidados já experimentavam essa dinâmica. Jacinta de Lourdes sugeriu uma noite, que o grupo construísse passarelas suspensas ao redor do espaço cênico triangular para que as atrizes se locomovessem de forma destacada do público. O grupo definiu que o espaço de cada personagem seria identificado por uma escada em cada vértice do triangulo, e os espectadores sentariam em bancos móveis.

Imagem 01 - Espetáculo "Anáguas", da Cia. Oxente.

Acervo da Cia. Oxente. Fonte: Jamil Richene, 2014.

Carlos Almeida, técnico em edificações e marcenaria, amigo de Margarida, foi convidado para desenhar e confeccionar as escadas com o mecanismo de montagem e desmontagem e os banquinhos dos espectadores. O desenho do cenário possui em sua maioria linhas retas e ângulos fechados, o que pode ser identificado com a dureza que é exigida das mulheres nordestinas e a força que cada uma delas conquista com suas experiências de vida. Maciel costuma dizer que a forma triangular unia as personagens deste espetáculo e sempre dava a intenção da escolha entre dois caminhos. Os únicos elementos cenográficos curvilíneos são três bacias, localizadas no centro de cada aresta, limitando o espaço para a cena do banho, onde as personagens se desnudam e encaram a particularidade íntima de ser mulher.

Alguns adereços podem ser considerados coadjuvantes deste espetáculo, por exemplo, a água de colônia que é utilizada para o banho, assim como para anunciar a dor da morte. Esta montagem está permeada pelo cheiro de ervas como colônia, manjericão e alfazema.

O desenho de luz obedeceu a essa condição, com focos nítidos, recortados e com apenas três cores. Edilson Alves, parceiro da Cia. Oxente, foi responsável pelo plano de luz, e eu atuava como operadora de iluminação em todas as apresentações até 2016, quando fui substituída por Jamil Richene. Durante todo o espetáculo, prevalecia a luz geral âmbar em resistência baixa e cada escada tinha um foco branco recortado nas laterais, delimitando o espaço individual de cada personagem. As bacias eram iluminadas com pinos brancos, criando uma atmosfera de intimidade com efeito de sombras criadas pelo posicionamento vertical do foco. Ao final, a luz geral se tornava azul, anunciando a noite e por consequência a morte. Outro efeito de iluminação na cena final é a utilização de velas, que são as últimas fontes de luz a serem apagadas pelas próprias atrizes em cena.

Imagem 02 - Luz azul na cena do velório no espetáculo "Anáguas", da Cia. Oxente.

Acervo da Cia. Oxente. Fonte; Gustavo Moura, 2012.

Os trajes de cena indicam uma época que não se pode especificar, o que fica claro desde o título é o pudor inerente ao vestuário tradicional feminino. Nesse sentido eu escolhi trabalhar com a mesma base do traje para as três personagens, saias com anáguas longas e blusas com fechamento frontal. A distinção era feita pelas cores, pelos tecidos e pela modelagem das blusas. A matriarca veste anágua cinza com bico rendado bege, saia com recortes triangulares na cor chumbo, e uma blusa com mangas longas de cambraia de algodão com estampa floral delicada cinza claro; a filha mais velha, veste anágua verde água com bico rendado marrom, saia com recortes triangulares verde musgo e blusa com mangas em comprimento mediano de cambraia de algodão off-white; e a filha mais nova veste anágua laranja com bico rendado laranja, saia vermelha com recortes triangulares e blusa com mangas curtas de algodão estampado e recorte com renda rosé no busto. Essa foi a maneira que eu encontrei de contar a história dessas mulheres através dos trajes de cena. A idade pode ser definida pelo comprimento das mangas, a mais velha tem o maior comprimento. Esse efeito também pode identificar a relação com a liberdade, onde a filha mais nova se permite ser vista por todos. Dentro do imaginário ocidental, as cores podem servir a esse mesmo propósito, a cor mais escura representando a dureza e o vermelho, o sangue, as paixões da vida.

Imagem 03 - Reunião sobre traje de cena com José Maciel, Palmira Palhano, Margarida Santos e Tainá Macêdo.

Acervo da Cia. Oxente. Foto: Mônica Macêdo, 2011.

 

Imagem 04 - Palmira Palhano, Margarida Santos e Mônica Macêdo representam, respectivamente, Maria Cândida, Maria das Graças e Maria Exaurina no espetáculo "Anáguas", da Cia. Oxente.

Acervo da Cia. Oxente. Fonte: Gustavo Moura, 2012.

O que fica exposto durante esse espetáculo da Cia. Oxente são questões relacionadas aos papéis da mulher dentro de uma família tradicional, a força da mulher nordestina que sobrevive dentro de um sistema patriarcal comandado por homens e a manutenção desse sistema pelas mulheres com atitudes machistas. Afinal, que mulher somos? Que mulher queremos ser?

O texto de Lourdes Ramalho apresenta uma família comandada por uma mãe de 21 filhos, dos quais apenas duas filhas aparecem em cena. A matriarca, Maria das Graças, recusa a venda das terras do falecido marido, hoje comandadas pela filha mais velha, Maria Exaurina, que estudou e assumiu o papel de administrador da fazenda com a morte do pai. Exaurina foi noiva, mas sua irmã mais nova, Maria Cândida, conquistou o noivo dela, mas logo o deixou. Cândida vive sua liberdade, sai com quem quer e não se apega. O espetáculo acaba quando Cândida anuncia que está grávida e não sabe quem é o pai, Maria das Graças tem um ataque fulminante e vem a óbito, Exaurina faz o velório da mãe e recebe a esperança em forma de bebê dos braços de Cândida que sai de cena. As luzes apagam.

O espetáculo se encerra, mas os questionamentos permanecem. O público, muitas vezes sem reação, permanece sentado no escuro processando as informações e relações construídas em cena. O teatro assume uma de suas funções, levar o espectador à reflexão, com questionamentos ainda contemporâneos. A Cia Oxente, por sua vez, permanece refletindo sobre o fazer artístico no Nordeste, envolvendo a cultura paraibana em todas as suas produções.

Foto da capa: Jamil Richene, 2014.

Para maiores informações sobre o espetáculo:

Blog do espetáculo “Anáguas”. Disponível em: http://anaguas-jp.blogspot.com

Perfil da Cia. Oxente no Facebook. Disponível em: https://www.facebook.com/cia.oxente

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